sábado, 22 de agosto de 2020

Transcripto: Os Dois Cavaleiros Portugueses (Torres Novas, 1834), por Cláudio de Chaby

 

A seguinte transcrição diz respeito a um episódio da Guerra Civil, contado por Cláudio de Chaby. Passa-se no início de 1834, em Torres Novas, e ilustra a monstruosidade do conflito civil  e, ao mesmo tempo, a perseverança do soldado português.

«Conservamos indelével a lembrança de um facto, por nós em parte presenciado, quando aos quatorze annos faziamos numero em campanha, das fileiras de um regimento do exercito constitucional. Era o dia 25 de Janeiro de 1834, a villa de Torres Novas então occupada por forças do exercito contrario, nas quaes entravam, cremos, alguns soldados do regimento de cavallaria de Chaves, caiu, quasi por surpreza, em poder das tropas pessoalmente commandadas pelo general marquez de Saldanha. O inimigo retirou sobre Santarem; o general Saldanha ordenou a perseguição da retirada, e ao nosso regimento, infantaria n.º 3, em marcha violenta, coube o auxiliar a cavallaria, que seguiu sobre os passos dos fugitivos.

Dispersos por extensos olivaes, procuravam escapar-se os dragões de Chaves a toda a brida, sendo de perto perseguidos pelos lanceiros da rainha; mas não soffrendo os animos portuguezes de alguns d'aquelles soldados, a vergonha de serem pelas costas tocado pelo ferro do inimigo, com a espada em punho volvem á frente, illustrando-se muitos em singulares combates, por uma briosa defensa até á morte.

Entre elles, um, depois de haver trocado com o adversarios varios golpes, com pulso robuto consegue de um bóte fazer voar pedaços a lança do competidor; este substitue a lança pela espada, e apeleja renova-se com tenacidade, terminando quando ambos, depois de horrivelmente mutilados, já sem forças, se deslizam dos cavallos baqueando exsangues sobre o solo!

Os rostos, os troncos e membros destes dois valentes, foram litteralmente cobertos de pontos no hospital da villa, e por uma fatal irreflexão, collocados os dois feridos em leitos contiguos.

No dia immediato, através de pequenas fendas que lhes deixavam a immensidade dos pontos pela qual tinham envolvidas cabeças e caras, lobrigam-se e quasi instinctivamente se reconhecem; abandonam então os leitos e agridem-se, despedaçam-se os apparelhos, rasgam-se de novo as feridas, e por ellas com o resto do sangue se lhes escôam as vidas, caindo cadaveres hum junto ao outro.

Em todo este procedimento singular dos dois soldados portugueses, há alguma coisa de repugnante e feroz, que parece ultrapassar os limites, para assim dizer da valentia racional; mas quanto não há tambem de respeitavel?»

* * *

Saiba mais sobre Cláudio de Chaby aqui [abre janela]


Transcrito de

CHABY, Claúdio de, Excerptos Históricos e Colleção de Documentos Relativos à Guerra Denominada de Peninsula e às Anteriores de 1801 e do Roussillon e Cataluña, (Volume I), Lisboa, Imprensa Nacional, 1863. pp. 247-248.

Imagem

- "Escola Prática de Polícia vista do Castelo", Torres Novas, com a vista dos extensos Olivais em torno da terra. Retirado da Wikicommons em https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Escola_Pr%C3%A1tica_de_Pol%C3%ADcia_vista_do_Castelo.jpg

Sem comentários:

Enviar um comentário