domingo, 21 de abril de 2024

Transcripto: José de Abreu e a Independência do Paraguai (9 a 23 de maio de 1811)

«Regressa do Paraguai o tenente José Abreu dando noticias circunstanciadas dos sucessos políticos daquela provinda espanhola; receção que teve o dito tenente na residência do Governador Velasco ; este se manifesta inteiramente submisso aos desígnios da Princesa D. Carlota, pois que não reconhece outro sucessor á coroa e domínios da Espanha ; regozijo popular em sinal da aliança dos portugueses com os paraguaios; levante de quartel, prisão e espancamento do major Cabrera ; intimação ao governador e sequestro do tenente Abreu; acentua-se a revolução ; assédio da casa do governador; deposição de Velasco; D. Fulgencio Yegros assume o Governo ; o tenente Abreu despede-se de D. Bernardo Velasco e este reafirma sua fé politica em D. Carlota, a quem reconhece como única sucessora de D. Fernando VII, e pede ao tenente Abreu que interceda junto a D. Diogo de Souza para que venha em seu socorro, na dolorosa situação em que se acha; o novo governador Yegros afirma contar com recursos vindos de Buenos Ayres.

[Carta de Francisco das Chagas Santos, governador das Missões Orientais ao capitão-general do Rio Grande do Sul, D. Diogo de Sousa, recontando o testemunho do tenente José de Abreu dos eventos em Assunção em torno do 14 de maio de 1811; ortografia modernizada]

Ilmo. e Exmo. Senhor. 

Com o regresso do tenente de Dragões José de Abreu, que aqui chegou ontem do Paraguai, se verificam as notícias, que participei a V. Ex.ª no meu ofício de 30 do mês passado, a respeito daquela província, donde não sem trabalho e receio se livrou o mesmo tenente; o qual me fez a seguinte narração de tudo quanto aconteceu, e ele observou pessoalmente. Achando-se detido no povo de Itapúa [no original, Ytapua; atual Encarnación] 15 dias o mesmo tenente Abreu pelo tenente-coronel e tenente governador D. Fulgencio Yegros [Fulgencio Yegros y Franco de Torres, 1780-1821], recebeu esta carta do governador D. Bernardo Velasco [Bernardo Luis de Velasco y Huidobro, 1742-1823], assim como o sobredito tenente para que continuasse a sua marcha à cidade de Assunção, onde em consequência chegou a 9 do mês de maio depois de nove dias de viagem desde o citado povo. 9 léguas distante daquela cidade foi recebido o tenente Abreu por um ajudante de ordens de Velasco, com um sargento e quatro soldados, e na casa onde parou ao meio-dia, e pernoitou lhe deram um grande jantar. 

Ao seguinte dia vieram cumprimentar ao mesmo tenente um clérigo, e dois oficiais sendo um destes mandado da parte do tenente-coronel D. João Manuel Gamarra [Juan Manuel Gamarra y Mendoza], mui acreditado, e estimado dos paraguaios, pelos quais é denominado o general Gamarra; pois confeção que a ele devem a defesa do seu país; em caminho chegaram mais três oficiais de artilharia, e no sítio da Recoleta onde principia a cidade começou ajuntar-se tanta gente no espaço de uma légua de marcha, que quando chegou o tenente Abreu à residência do governador Velasco se viu acompanhado por mais de 3000 pessoas de ambos os sexos: Velasco saiu à porta da rua onde se achava a sua guarda, e o recebeu com a maior alegria; e depois de conversar mais de duas horas, referindo os diversos ataques em que bateu, e venceu aos de Buenos Aires, asseverou que todo o seu empenho era pôr-se aos pés da sereníssima senhora Dona Carlota; pois que não reconhecia outro sucessor à coroa, e domínios de Espanha. O mesmo governador acompanhou ao tenente Abreu a um decente quarto destinado para o seu alojamento na mesma residência onde cearam. 

No dia 10 disse Velasco ao tenente Abreu que seria muito conveniente que V. Exa. mandasse um destacamento de 200 homens de cavalaria para o outro lado do Uruguai, a fim de se conservarem entre o mesmo Uruguai, e o Paraná nos sítios de Curuzú Cuatiá [Curuçu-quatiá], e Corrientes para evitar a comunicação de Belgrano com as Missões, e Paraguai. 

No dia 11 mandou Velasco convocar o cabildo, e o bispo, e se ajuntaram todos às 4 horas da tarde na sala da residência, onde estiveram mui satisfeitos até ás 11 horas da noite, e assentaram em responder a V. Exa. que ao sobredito destacamento de 200 homens daria V. Exa. as ordens que lhe parecesse, e que ao mencionado tenente-Coronel D. Fulgencio Yegros se determinava: que obedecesse, e seguisse as ordens de V. Exa., a quem se remetia a nomeação de governador de Missões do lado ocidental do Uruguai, para V. Exa. a confirmar na pessoa do mesmo tenente-coronel.

Nos seguintes dias 12, 13, e 14 enquanto o governador, Cabildo, e bispo escreviam a V. Exa. se ocupou o tenente Abreu em corresponder, e pagar infinitas visitas, que as principais pessoas lhe fizeram, tendo-o antes obsequiado com muitos presentes de doces, e um grande baile; a imitação do qual houveram [sic] outros, em sinal da aliança dos portugueses com os paraguaios. Havendo recebido as cartas sobreditas o tenente Abreu, e achando-se já pronto a partir na manhã do dia 15, sucedeu, que na noite do dia 14 pelas 8 horas saindo ele à rua, encontrou o tenente-coronel Gamarra com uma Clavina, e um par de Pistolas no cinto, acompanhado de um soldado armado da mesma forma, e um criado com um lampião: perguntou o mesmo tenente, que novidade havia, e respondeu Gamarra que ia a ver o governador; pois gritavam pelas ruas alvoroto en la Plasa. Voltou o tenente Abreu com o mesmo Gamarra à residência do Governador, a quem perguntando Gamarra, que novidade. havia, disse o governador: que ouvia dizer haver alvoroto; mas que não sabia o que hera. Pouco depois entrou um dos cabildantes dizendo: que a tropa (não excediam de 100 homens entre Granadeiros, e Artilheiros que faziam a guarda do governador) se havia fechado no quartel, e não abria a porta a ninguém, e trabalhavam dentro em montar peças de artilharia, e carregar espingardas. Disse então o governador a Gamarra: que fosse ver o que havia no quartel; a cuja porta batendo Gamarra perguntaram quem era: respondeu: que era Gamarra: disseram-lhe então de dentro: ─ perdone mi General, que no se abre agora la puerta: replicou Gamarra dizendo se o não conheciam e responderam, que sim, e se ele também era dos que pretendiam desarmar aos paraguaios: disse Gamarra que bem o conheciam, e que ele também era paraguaio; e não conseguindo se lhe abrisse a porta, voltou a dar parte ao governador. 

Passado algum tempo mandou o mesmo Gamarra ao quartel um tenente paraguaio bem conhecido; o qual antes de chegar à porta lhe deram 1 tiro de clavina de uma das janelas, e voltou com esta notícia ao governador ; que perturbado, e aflito perguntou ao tenente Abreu o que lhe parecia semelhante desordem; ao que respondeu: que seria bom mandar cercar o quartel, não permitindo, que lhe entrasse, nem saísse, pessoa alguma até de manhã; em cujo tempo se insistissem em não abrir a porta, entregando-se os de dentro, se atacasse fogo ao mesmo quartel.

A este tempo chegou o major da praça Cabrera [no original, Cabrer] acompanhado de 8 soldados. com que andava de ronda, e se ofereceu para ir ao quartel; cuja porta não se lhe abrindo, disseram os soldados, que abrissem, pois eram paraguaios; então abriram a porta, e os mesmos soldados empurrando para dentro o major, e dando-lhe pranchadas, entraram todos e fecharam a porta, amarraram o major, e assim o conservaram toda a noite. 

Mandou o governador o religioso Canhete mui respeitado e conhecido por suas virtudes, que fosse ao quartel afim de apaziguar aquela desordem; mas nada conseguiu o do religioso, tendo ido 3 vezes, até que da ultima lhe disseram: que se retirasse ao seu convento; pois não precisavam de mais práticas. Às 11 horas da noite chegou do quartel o alferes Iturbe [no original, Yturve; Vicente Ignacio Iturbe, 1786-1837] com 1 papel assinado por ele o capitão Caballero [no original, Cavalheiro; Pedro Juan Caballero, 1786-1821] autor desta revolução. e outro alferes irmão do 1°, no qual papel diziam ao Governador: que na manhã do seguinte dia 15 se lhes havia entregar as chaves do cabildo, dos cofres reais, da secretaria, e do estanque do tabaco; devendo logo separar-se da companhia do Governador o seu assessor e sobrinho D. Benedito, o ajudante de ordens D. José Theodoro, e o fiscal D. José Isalde; e que o tenente português Abreu não sairia da cidade, nem montaria a cavalo até segunda ordem. A isto respondeu o governador por escrito e ficou esperando o alferes Iturbe na guarda da porta, onde disse assaz enfadado: que não se precisava incomodar a Portugal; pois não careciam socorros: que os europeus haviam ficado na cidade, sem ajudarem com o seu dinheiro os pagamentos das tropas milicianas empregadas em defender a fronteira, e disseram que não tinham dinheiro, sendo certo, que no dia do ataque do Paraguarí [batalha a 19 de janeiro de 1811, vencida pelas forças do Paraguai contra um exército de Buenos Aires] correndo a noticia por um traidor, que os de Buenos Aires tinham vencido, embarcaram logo, os mesmo europeus 350$000 pesos fortes, a fim de os salvarem para Montevidéu: que os paraguaios depois de repelir, e afugentarem da sua fronteira aos de Buenos Aires, se deram os postos somente aos europeus, e ainda mesmo aos que ficaram na cidade, não sendo contemplados os paraguaios, tratando-os com desprezo, e pior que de antes, por último que intentavam desarmá-los, afim de ficarem só armados os europeus. Respondeu o ajudante de ordens D. José Teodoro, que é paraguaio, dizendo: que antes se tratava de armar maior número de paraguaios, que quanto ao dinheiro, bem se sabia que ele ajudante de ordens estava avisado para ir a Matogrosso a receber o dinheiro que o capitão-general de Cuiabá [no original, Cuyaba] tinha oferecido. A isto disse o alferes Iturbe que ele ajudante de ordens teria bom interesse naquela comissão; pois que além do soldo lhe davam bastante dinheiro para os gastos da viagem, assim como deram 600 pesos a D. Carlos que conduziu os prisioneiros a Montevidéu, e que a ele alferes, e aos demais não se davam semelhantes comissões; pois só serviam para trabalhar, e arriscar suas vidas, sem nada lhes pagarem, e tratando-os com desprezo: que não achavam para governar, e a quem dar tudo, se não aos europeus  e por último: que havia dizer a verdade, ainda que o matassem. Despedido este alferes com a resposta do governador para o quartel, disse o mesmo Velasco ao tenente Abreu: que logo queimasse os ofícios, e respostas dele governador, do bispo, e do cabildo para V. Exa.; o que imediatamente praticou o mesmo tenente. 

Cercado o quartel pelos europeus armados, fugiram, e desapareceram logo que sobre ele deram vários tiros de espingarda do mesmo quartel; do qual saindo os paraguaios em número de 80 ao romper do seguinte dia 15 puxaram para a praça seis peças de artilharia, das quais assestaram duas em frente da residência do governador, e as mais nas bocas das ruas, e ajuntando-se-lhes a este tempo grande número de paraguaios, mandaram do quartel pelo alferes Iturbe duas cartas ao governador, para que cumprisse as condições que na noite precedente se haviam requerido, e do contrário arrasariam a sua residência, e a mesma cidade: chegou a este tempo o bispo com vários eclesiásticos ao quartel, onde lhes disseram que nada era com ele e se recolhesse à sua casa: e o governador respondeu: que ajuntava o cabildo, afim de se proceder à entrega pretendida; a qual havendo-se demorado até as 8 horas da manhã, instaram os oficiais do quartel dizendo que se continuasse a demora mandavam dar fogo às peças: imediatamente mandou o governador entregar-lhes tudo quanto quiseram; depois do que içaram uma bandeira na praça, com salva de 21 tiros de artilharia, gritando todos Viva a união: uma hora depois botaram um bando feito no quartel, e mandado assignar pelo governador, para que todos os que tivessem em suas casas armas, e munições de Guerra, entregassem em duas horas no quartel, onde tudo se pagaria pelo seu justo valor; pena de não o fazendo assim serem castigados com todo o rigor. 

Em consequência recolheu-se todo o armamento, que havia na cidade que pouco mais ou menos seriam 150 clavinas. Seguiu-se logo outro bando feito no quartel, e assinado pelo mesmo Velasco ordenando-se: que das 8 horas da noite por diante ninguém saísse de suas casas sem urgentíssima necessidade; em cujo caso levariam um lampião: e que as patrulhas, que giravam pelas ruas, prenderiam a todas as pessoas, que se achassem conversando, sendo mais de duas. Ao pôr o sol arrearam a bandeira, e deram 9 tiros de peça. No dia 16 se recolheu a artilharia ao pátio do quartel, ficando as bocas das ruas com guardas de 8 homens; e sendo apresentados vario requerimentos aos três oficiais do quartel, responderam: que nada podiam deliberar sem que chegassem os dois deputados, que eram os Doutores Francia [no original, França; José Gaspar García y Rodríguez de Francia Velasco y Yegros (1766-1840)], e Zebalhos [no original, Cebalhos; Juan Valeriano de Zeballos] (ambos paraguaios) e os oficiais da Plana-maior, que haviam mandado chamar: os quais eram o Coronel Gracio o tenente-coronel Cavañez, e o tenente-coronel D. Fulgencio Yegros, a quem haviam nomear por seu governador. 

O tenente Abreu dirigindo-se logo na manhã deste dia ao quartel afim de saber o motivo da sua demora, ou impedimento, lhe respondeu o capitão Caballero: que pedisse tudo quanto precisasse; mas que não hera conveniente, que saísse fora da cidade, antes da chegada dos ditos oficiais da Plana-maior: e nesta ocasião lhe disse aquele capitão: que tendo quatro irmãos oficiais empregados no Real Serviço, e indo sua mãe viúva pedir ao governador Velasco hum dos ditos filhos para sua companhia, não lhe concedera: e que expondo ele capitão ao mesmo Velasco, que seu pai tendo feito a grande picada, e ponte de Taquary, pela qual atacaram, e venceram aos de Buenos Aires, morrera repentinamente naquele trabalho, ficando empenhado, e que por isso pedia se lhe permitisse embarcar uma porção de tabaco, e erva-mate para Montevidéu, pagando os fretes competentes; não se lhe concedeu esta pretensão, e só embarcaram os europeus os seus efeitos; ficando excluídos deste recurso os paraguaios, e que por estas e outras rezões os de Buenos Ayres procuravam a sua liberdade. 

No dia 17 chamaram ao quartel o tenente-coronel Gamarra, e lho propuseram: que entrasse na sua junta; pois muito precisavam dele: respondeu Gamarra: que estava pronto, com a condição porem, de não ser nunca contra o seu soberano, nem contra a religião, nem sujeitar-se à Junta de Buenos Ayres; pois não queria botar um borrão na glória, que havia adquirido nos memoráveis ataques do Paraguai [erro de transcrição; refere-se, provavelmente, à batalha de Paraguarí, referida anteriormente], e Tacuarí [batalha a 9 de março de 1811, que resultou na derrota e retirada do exército portenho liderado por Manuel Belgrano], contra os de Buenos Aires; não agradando esta resposta, mandaram que se retirasse Gamarra. Pela uma hora da noite deste dia se prenderão todos os comandantes, e marinheiros europeus dos barcos armados em Guerra, que se achavam no Paraná junto a Corrientes, Nhembocú [?], e Candelaria. 

No dia 18 mandaram prender o tenente-coronel Gamarra, e ao capitão ajudante de ordens D. José Teodoro, ambos incomunicáveis, e se dizia pelas ruas que haviam enforcar ao tenente português Abreu, e aos dois portugueses que o acompanhavam, a fim de não trazerem noticias. 

No dia 19 também se dizia, e avisaram ao tenente Abreu, que o queriam remeter, e aos seus companheiros presos em grilhões para Buenos Ayres: e no quartel se ordenou: que os oficiais europeus assim de tropa de linha, como milicianos tirassem as divisas de oficiais. 

No dia 20 foi segunda vez o tenente Abreu ao quartel, onde se achavam os sobreditos deputados, e muitos oficiais, que haviam chegado de diversos distritos; e propôs: que ou o mandassem matar como diziam, ou o remetessem preso a Buenos, ou o deixassem // regressar ao seu destino, afim de dar conta da sua comissão a V. Exa., ou lhe permitissem dar parte do motivo da sua demora; e que quanto antes decidissem da sua sorte: respondeu o referido capitão Caballero; que não se afligisse; pois no seguinte dia sem falta entrava na cidade o novo governador D. Fulgencio Yegros, que já se achava na Recoleta 1 légua distante. 

No dia 21 partiu muita Tropa, e gente, de todas as classes para a Recoleta, a fim, de receber o novo governador Yegros; o qual pelas quatro horas da tarde entrou com grande acompanhamento na cidade, que salvou com onze tiros de peça, e o conduziram ao quartel onde depois de se apear foram logo os dois deputados mencionados, o capitão Caballero, e os dois alferes da revolução visitar ao tenente Abreu, com o qual se desculparam de o não ter antes cumprimentado por satisfação ao povo, que dizia ter ele ido a comprar o Paraguai. Concluída a dita visita, foi logo o tenente Abreu ao quartel a cumprimentar o novo governador Yegros, que o recebeu com muitos abraços, por ser seu conhecido, e lhe prometeu: que no dia 23 se retiraria livremente com a resposta a V. Exa. 

No dia 22 houve no quartel missa cantada, e Te Deum laudamos pela feliz chegada do dito governador Yegros. 

No dia 23 indo o tenente Abreu ao quartel para lhe entregarem a resposta, disseram: que a fosse receber do governador Velasco; o qual entre os dois deputados Francia, e Zeballos entregou a carta, ou resposta; e os mesmos deputados pediram ao tenente Abreu os pusesse aos pés de V. Exa., dizendo: que nenhuma novidade lhe causasse aqueles acontecimentos; pois que só eram tendentes a regular melhor o seu governo. 

Passou o tenente Abreu a despedir-se do governador Yegros, a quem devia o seu regresso, e dos oficiais do quartel, aonde pediu licença para se despedir dos dois presos o tenente-coronel Gamarra, e o ajudante de ordens D. José Teodoro, o que lhe concederam indo acompanhado de um oficial, para o qual olhando o tenente-coronel Gamarra disse; que não lhe parecesse que ele receava, ou tinha medo da morte; pois que muitas vezes tinha arriscado a sua vida, e virando-se para o tenente Abreu lhe pediu o pusesse na presença de V. Exa., e que primeiro teria a notícia de o haverem assassinado, que deixar de ser fiel ao seu rei, e sucessores ; pois que jamais obedeceria à Junta de Buenos Ayres. O ajudante de ordens despedindo-se também pediu que o recomendasse a V. Exa., certificando-lhe, que ele se achava preso sem outro delito, que o de ser ajudante de ordens de Velasco; por ordem do qual estava pronto a vir à presença de V. Exa, a não haver acontecido aquela revolução. Ultimamente foi o tenente Abreu despedir-se do governador Velasco; o qual chorando deu-lhe muitos abraços, e com as expressões mais enternecidas pediu; que o pusesse aos pés de V. Exa., rogando, que lhe valesse, e atendesse a sua vida; pois que as suas intenções somente consistiam em pôr-se aos pés da senhora D. Carlota, como legítima sucessora do senhor D. Fernando VII: que V. Exa. pusesse os olhos sobre aquela província, ainda que ele Velasco não existisse; e que os papéis que conduzia o tenente Abreu bem sabia este que ele fora obrigado a assinar, assim como outros muitos, e que ele tenente seria algum dia uma das testemunhas, que as suas assinaturas desde aquela revolução foram sempre forçadas. 

Principiando a sua retirada o tenente Abreu, despediu-se de outras muitas pessoas; as quais lhe rogaram, e principalmente os europeus; que os recomendasse à proteção de V. Exa., em quem tinham toda a confiança, e lhes valesse, para o que contasse V. Ex.ª com todos os seus cabedais, e q não escreviam com o reto de serem apanhadas as suas cartas pelas guardas que se haviam posto nos caminhos; as quais encontrou com efeito o mesmo tenente, que contou sete ate o Paraná não sendo nenhuma delas de menos de 30 homens. 

Diz o tenente Abreu, que quando passou por Itapúa, onde se achava o tenente-coronel Yegros, nomeado hoje governador, lhe mostrava este um papel, ou Gazeta de Buenos Ayres, sobre a antipatia entre os europeus, e americanos, e que no dia em que chegou a Assunção, o mesmo governador Yegros a quem ele tenente fora logo visitar, lhe preguntara se estava certo naquele papel, e respondendo: que sim, disse então Yegros; pois agora lhe mostrarei outro melhor, e tirando-o da algibeira leu, e dizia «Eia honrados paraguaios, sustentai o que tendes feito, que não faltaremos com todos os socorros de dinheiro, armas, pólvora, bala; agora florescerão os americanos livres da opressão dos europeus...» 

Refere o mesmo tenente Abreu que ao terceiro dia depois da revolução do Paraguai, achando-se o alferes Iturbe em casa de uma mulher, e perguntando esta com que intenção havia feito semelhante atentado, não tendo pólvora, nem armas com que se defenderem dos portugueses se lá fossem, respondera o mesmo alferes, a quem fizeram major da praça: que nada lhes faltaria; pois brevemente esperavam todos os socorros de dinheiro, pólvora, e bala, de Buenos Ayres como terra. 

Concluo certificando a V. Exa. de haver eu recebido o seu ofício de 10 do corrente mês, em resposta ao meu de 30 do mês passado. Deus guarde. a V. Exa. muitos anos, como desejo. 

Povo de S. Borja 7 de junho de 1811. Ilmo. e Exmo. Sor. D. Diogo de Souza. De V. Exa. o mais obediente súbdito. Francisco das Chagas Santos»


Fonte

Revista do Arquivo Público do Rio Grande do Sul, n.º 4, outubro de 1921, Porto Alegre, Oficinas Gráficas de A Federação. pp. 67-81