sábado, 27 de julho de 2019

Memórias: Expedição do Algarve, Junho e Julho de 1833 (capitão Marquês de Fronteira)


«O Marechal Solignac foi logo substituido, como Major General, pelo General Saldanha, e organisou-se uma Divisão, debaixo do commando do Tenente-General, Duque da Terceira, para desembarcar nas costas do Algarve.
Foi então que o Duque do Fayal passou a ter o titulo de Duque de Palmella, sendo nomeado Governador Civil provisorio, para partir com a expedição.

A Divisão do Duque da Terceira foi assim organisada: Commandante o Tenente-General, Duque da Terceira; Ajudante-General o Tenente-Coronel Manuel José Mendes; Quartel-Mestre General o Major José Jorge Loureiro; Secretário militar o capitão Luiz da Silva Mousinho de Albuquerque; Ajudantes de campo os capitães Marquez de Fronteira e D. Manuel da Camara; Officiaes de ordens o tenente Conde de Ficalho, Ajudante de campo do do Imperador, e varios outros officiaes; Auditor o bacharel João Antonio Lobo de Moura, hoje Visconde de Moura e Ministro de Portugal na Russia.

A força compunha-se de duas Brigadas. A primeira, commandada pelo General Schwalbach, que era a ligeira, constava de Caçadores 2 commandado pelo Coronel Romão, e Caçadores 3 commandado pelo Major Vasconcellos, hoje General, Barão de Leiria. A segunda Brigada, do commando do General Brito, compunha-se do batalhão de Infanteria 3 commandado pelo Coronel Marianno Barroso, do batalhão de Infanteria 6 commandado pelo Coronel Torres, e do batalhão francez de seiscentas baionetas commandado pelo Coronel Barão de Schwartz, batalhão e Coronel que eram uma verdadeira peste. Ia mais meia bateria de montanha, servida pelos academicos, e dezoito lanceiros montados, commandados pelo capitão Griffet, hoje Brigadeiro.
O General D. Thomaz de Mascarenhas estava addido ao Quartel General, assim como o Major Rezende, que ultimamente morreu General e Barão, e Saint-Maurice, antigo Ajudante do Marechal Solignac, e outros officiaes.

Recebemos ordem de embarque para o dia 20 de Junho, á noite: mais uma separação de amigos e parentes e, principalmente, do irmão, que era o meu primeiro amigo, deixando-o sitiado e ameaçado dum grande assalto, commandado por um dos primeiros capitães do Exercito francez, porque já se annunciava a chegada do Marechal Bourmont para commandar o Exercito de D. Miguel, isto quando eu partia para uma expedição das mais aventurosas, apenas com mil e quinhentos homens que tinham de arrostar com forças triplicadas em numero e que iam intentar o ataque duma capital de trezentos mil habitantes com uma guarnição de oito mil homens.

Abraçando o irmão e os amigos e dando-lhes os ultimos adeuses, parti no dia 18, de tarde, para a Foz, seguindo o meu General. Este aquartelou-se com o seu collega Saldanha, e eu e os meus camaradas onde pudémos.
Eu arranchei com os academicos que faziam parte da expedição. Entre elles, havia um dos meus amigos de creação, Domingos de Saldanha, irmão do General Saldanha, o doutor Freitas, advogado nesta capital, bem conhecido pelo seu espirito mordaz, e o meu actual collega na Camara dos Pares, Pinto Bastos.
Meu cunhado e o Conde de Ficalho tambem se associaram comnosco e as horas que alli passámos correram alegremente, tendo uma mesa soffrivel.
No dia 18, embarcaram, com grande custo, por causa do fogo das baterias, Napier e o Quartel-Mestre General José Jorge Loureiro, e mais alguns officiaes, decidindo-se que o embarque dos Duques de Palmella e da Terceira tivesse logar na noite de 19, na praia entre a Foz e o Farol da Luz.
Napier, que não era o typo do aceio, teve a fantasia de tomar, nesta occasião, um banho, debaixo do fogo das baterias inimigas, na praia da Foz.

Á meia noite entrámos num grande escaler que estava a grande distancia do mar, o qual, depois de embarcarmos, foi levado por oitenta homens, que o deviam levar, com o maior silencio, até o pôrem a nado, por isso que nós estavamos a meio tiro de fusil das vedetas inimigas, valendo-nos a escuridão da noite.
Assim que a embarcação cahiu na agua e que os remos se puzeram em movimento, sendo nós presentidos pelas vedetas e baterias inimigas, rompeu, de todos os lados, um fogo vivissimo, mas felizmente em direcção contraria áquella em que íamos; apesar dos foguetes da China illuminarem o espaço, nunca nos puderam descobrir. No campo inimigo sabia-se da expedição e pode-se fazer ideia do empenho que teriam em metter a pique a embarcação que conduzia os Duques ou o Almirante Napier.
Muito nos custou a abordar á fragata almirante: a noite estava escura, e andamos, de navio em navio, até que, ao fim de duas horas, encontrámos a fragata Rainha de Portugal. Entrando na camara do Almirante Napier, elle francamente nos disse que tinha dois canapés para os Duques e que nós tinhamos o chão por cama e o peor de tudo era que havia a peste a bordo, porque o cholera lavrava na tripulação e, nas ultimas vinte e quatro horas, tinham fallecido seis homens da equipagem.

Seriam duas horas da noite quanto o Almirante nos fez servir um pessimo grog e nos deu a permissão de fumar na sua camara, propondo-nos o fazermos um deposito geral dos nossos charutos bons e maus e termos uma ração diaria de tantos charutos por cabeça.
O Quartel-Mestre General, eu e varios dos nossos camaradas annuimos á proposta, do que muito nos arrependemos, porque o Almirante, que fumava sem cessar, fumou a maior parte dos charutos do deposito.
Foi nesta noite que elle teve a curiosidade de saber o meu nome, e desde logo começou a chamar-me Fronteira e nem uma só vez na sua vida me deu o titulo de Marquez.
Embrulhámo-nos nos capotes e deitámo-nos no sobrado. Junto a mim estava o meu cunhado e o meu amigo, Major David, que estava muito incommodado. Não pudémos pregar olho toda a noite.

O Almirante Sartorius ainda estava a bordo, e toda a noite esteve em conferencia com o novo Almirante, o qual subia á tolda repetidas. vezes e passava por cima de nós, pondo-nos os pés, ora na barriga, ora nas costas, como se andasse pelas ruas dum jardim.
Ao romper do dia estavamos todos na tolda, juntamente com o Almirante. Faltava-nos agua e polvora e Mendizabal que, como já disse, era da expedição. O Almirante telegraphou logo para a Foz: Agua e polvora ou desembarco a expedição.

Durante o dia, recebemos a agua e polvora, debaixo da protecção da bandeira ingleza, porque o commandante da estação tinha instrucções secretas para proteger o embarque de polvora e dinheiro para a esquadra.
Pelas cinco horas da tarde, vimos sahir da Foz um escaler com a bandeira ingleza: era Mendizabal que se dirigia á fragata almirante, trazendo dois enormes caixões que se collocaram na carnaça onde jantavamos. Mendizabal entendia, e com razão, que era mais commodo sahir a barra do Porto debaixo da bandeira ingleza.
A caixa militar já estava a bordo, mas elle improvisou uma: pediu ao commandante da estação ingleza no Porto que lhe garantisse, com a sua bandeira, os fundos que levava para as despezas da expedição.
O Almirante Napier, maravilhado da grande somma de dinheiro que Mendizabal trazia nos enormes caixões, desconfiou que fosse alguma estrategia do fino Mendizabal e, mandando abrir um dos caixões, achou-o cheio de calhaus e pedras da praia da Foz! Este episodio muito nos fez rir durante toda a viagem.

* * *

No dia 21 pela manhã fez-se a expedição de vela, no rumo do sul, e sobre a tarde aproximou-se da barra da Figueira.
No dia 22 pela manhã avistou-se Peniche, e a fragata almirante aproximou-se da costa e da praça a tal ponto que, sem oculo, viamos a guarnição sobre as muralhas. O resto da expedição seguia viagem por fora das Berlengas.
Dobrámos o Cabo de S. Vicente durante a noite; era na vespera de S. João e vimos os frades do Hospicio do Cabo, á roda da fogueira.

O General e o Almirante tinham escolhido para ponto de desembarque as vizinhanças de Villa Real de Santo Antonio, afim de cortar ao inimigo a estrada de Mertola e limpar completamente a foz do Guadiana.

No dia 24 fomos roçando a costa do Algarve, soffrendo o fogo dos muitos fortes que a guarnecem, mas sem lhe respondermos. Pelas tres horas da tarde, estavamos em frente da praia escolhida para o desembarque, chamada de Alagôa, entre o forte de Cacella e Monte Gordo, a legua e meia de Tavira.
O Vice-Almirante fez avançar as embarcações de guerra, formando os transportes uma segunda linha. Tanto da praia, como do forte, fizeram alguns tiros, a que respondeu a fragata Rainha, fazendo calar as baterias de terra, vendo nós fugir pela praia os artilheiros. 
O desembarque effectuou-se logo com a maior facilidade. Muitos habitantes vieram ao nosso encontro, assegurando-nos que Villa Real estava completamente abandonada.

O General ordenou logo a marcha sobre Tavira, e a esquadra principiou a navegar ao longo da costa, em direcção ao Cabo de S. Vicente.
A noite estava escura e constava ao General que o Visconde de Mollelos, Governador do Algarve, estava a pouca distancia, com ideias de resistencia. Fizemos alto e bivacámos por algumas horas. Como acontece no meio dia da Europa, as noites de Junho são humidas e muitas vezes frias sobre a madrugada, e eu, por prevenção, tinha o meu capote sobre a terra. O meu amigo David ia de mal a peor, e ambos nos cobriamos com o mesmo capote, deitando-nos numa eira. Antes do romper do dia, continuámos a marcha, encontrando o inimigo na margem direita do pequeno rio Almargem.
O Visconde de Mollelos tinha escolhido aquella posição para: cobrir Tavira, e alli nos esperavam, com quatro peças de artilharia, os realistas de Tavira, Faro e Beja, e alguns artilheiros, do numero 2 e um destacamento de Cavallaria 5.
Alguns tiros de fusil e canhão manifestaram a presença do inimigo, mas, logo que a nossa columna avançou, coberta nos seus flancos por alguns atiradores, fugiu até Faro, atravessando Tavira, em desordem, e deixando em nosso poder uma peça de calibre 6 e uma de 3, e muitas munições. Nós apenas tivemos um soldado ferido e um contuso, mas, infelizmenie, o meu amigo e camarada Major David, assistente do Quartel-Mestre General, Passando a ponte, foi gravemente ferido num braço, isto sobre um ataque de cholera, que trazia desde a sahida do Porto, o que ignoravamos, produzindo-lhe a morte, apesar dos esforços do habil facultativo, Major Libanio, companheiro do Duque em todas as campanhas, e do desvelo do General e de todos nós.
Desde esta epoca, fiquei convencido de que o cholera não é contagioso: dormi ao lado do Major durante toda a viagem e no bivaque, cobertos com o mesmo capote!

Entrámos em Tavira em triumpho. Os habitantes pronunciaram-se logo pela causa da Rainha. O Duque, antes de se estabelecer no bello Quartel-General do Governador do Reino do Algarve, entrou no Convento dos Franciscanos, onde o guardião nos serviu belos figos e da melhor fructa de que tenho provado, e, perguntando-lhe o Duque pelos frades, soubemos que tinham morrido todos de cholera, escapando só elle e o leigo.
Não era consoladora a noticia para nós, que tinhamos devorado da bella fructa que nos apresentavam.

O Duque de Palmella e o Vice-Almirante vieram a terra conferenciar com o Duque da Terceira, e no dia seguinte marchámos sobre Olhão, sabendo, a pouca distancia desta villa, pelos habitantes que em massa nos vieram receber, que tinham acclamado ali a Rainha. 
Foi um dos quadros populares mais bellos que tenho visto, pelo vestuario dos habitantes e pela grande especialidade de palmas e ramos que traziam nas mãos.
Acampámos dentro e fora da villa. O cholera fazia alli grandes estragos.

Ao romper do dia, marchámos sobre Faro, onde entrámos entre repiques de sinos e girandolas de foguetes. O destacamento de Cavalaria 5, commandado pelo alferes Couceiro, apresentou-se logo, abandonando Mollelos, bem como vinte officiaes da primeira linha que alli estavam em deposito.
Poucas horas depois da nossa chegada, o litoral do Algarve tinha acclamado a Rainha e a Carta.
O Duque de Palmella, Napier e Mendizabal desembarcaram logo, e a esquadra ancorou na costa.
O General occupou-se logo da remonta para os officiaes do Quartel General, bagagens e reserva de polvora, o que se fez com toda a facilidade, pela boa vontade dos habitantes. Nós tinhamos marchado a pé, desde o momento do desembarque.

Os Duques e o Almirante estabeleceram-se no Palacio Episcopal, que o Bispo tinha abandonado momentos antes de nós chegarmos, dirigindo-se á capital. Alli estavamos, o mais commodamente possivel, tendo encontrado uma dispensa muito bem sortida.
O batalhão francez era o cancro da Divisão do Duque, os maiores ladrões e bebados que tenho visto. O Barão Schwartz era um verdadeiro cavalheiro de industria.
O Duque pediu ao Almirante um vapor para transportar logo duzentos dos mais insubordinados para as Berlengas, que já estavam occupadas por uma força nossa.
O seu embarque foi difficil, disparando as espingardas contra o General, Coronel e todos nós, e o resto do batalhão foi condemnado a ficar de guarnição em Faro, porque era impossivel que entrasse em campanha.

O Almirante Napier combinava os seus planos de campanha com o Duque, Loureiro e officiaes de Estado Maior, mas tinha tempo para tudo. Queria a sociedade do bello sexo e reprehendeu, uma vez, seriamente, o seu bom e amavel enteado, Charles Napier, porque, indo comigo a uma sociedade de senhoras, o não tinhamos levado; quando soube, porem, que a reunião tinha sido de boa sociedade e não suspeita, chamou-nos tolos, porque, em tempo de guerra, não se frequenta a boa sociedade do bello sexo.
Feitos os preparativos para nos pormos em marcha, seguimos sobre S. Bartholomeu de Messines e Loulé. O Duque de Palmella ficou em Faro, organisando o paiz. O General Brito foi nomeado, interinamente, Governador Militar do Reino do Algarve, e o Major Luna Governador da praça de Faro.

Bivacámos, no primeiro dia de marcha, na bella propriedade do Duque de Loulé, á Quarteira, onde nos faltava tudo, excepto perus, reduzindo-se o nosso jantar a peru assado, sem mais pão nem biscoito, porque nada havia.

O cholera assolava todos os casaes das immediações. O General, deixando uma brigada em S. Bartholomeu de Messines, aquartelou a outra Brigada em Loulé, onde estabeleceu o Quartel General em casa do Capitão-Mor Mascarenhas, com mais de oitenta annos de edade e que, desde o principio da usurpação, tinha seu filho nas masmorras da Torre de S. Julião.
Tanto elle como sua respeitavel esposa nos receberam com grande enthusiasmo, hospedando-nos com o maior luxo. A noite, as pessoas distinctas da terra vieram cumprimentar o Duque, e os donos da casa esmeraram-se em fazer as honras d'ella.
Na manhã seguinte, o almoço estava servido para o General e seu Estado Maior; esperavam-se os donos da casa, que não appareciam, quando de repente se abriu uma porta e appareceu o dono, trajando o luto mais rigoroso, com o aspecto triste e carregado, dizendo ao Duque que o desculpasse por o ter feito esperar, mas que naquella noite um ataque de cholera lhe tinha roubado a sua velha esposa. Apesar do terrivel golpe, teve a coragem de almoçar comnosco, almoço tristissimo, interrompido algumas vezes com o arranjo do enterro.

Foi ao sahir da missa militar, um domingo, que o Duque da Terceira teve a agradavel noticia de que, no dia 2 [na verdade, 5] de Julho, o Almirante Napier tinha derrotado completamente e aprisionado a Esquadra de D. Miguel. A noticia era dada pelo Duque de Palmella, remettendo um bilhete do Almirante, em que dizia: Pouco mais ou menos, a Esquadra inimiga está em meu poder. Tenho muitos prisioneiros; meio os posso guardar. Venham os Duques coadjuvar-me quanto antes.
O Duque de Palmella partiu logo num vapor para a bahia de Lagos, onde estava a Esquadra, e o Duque da Terceira, montando logo a cavallo, tomou o caminho de Lagos, por Albufeira. Ahi descançou alguns momentos em casa duma senhora distincta do paiz, visita de muito compromettimento para ella, porque, poucas semanas depois, perdeu os filhos e o genro, ficando só no mundo, pelo crime de ter dado hospitalidade ao Duque.

Chegámos a Lagos na manhã seguinte. A maruja miguelista e muitos soldados da Brigada tinham sido desembarcados pelo Almirante Napier. O mau hospital de Lagos estava cheio de feridos, tanto nossos como do inimigo, e Lagos estava em completa anarchia.
O Almirante tinha levantado a sua bandeira na nau inimiga, a nau Rainha, e o Duque de Palmella estava a seu bordo, achando-se prisioneiro o Almirante miguelista.
Muita impressão me fez, quando entrei na camara do Almirante, o vêr muitos officiaes amigos e conhecidos, gravemente feridos, entrando neste numero o enteado do Almirante. O segundo Commandante da nossa Esquadra entendia-se que estava mortalmente ferido, e tinhamos perdido dois Capitães de Mar e Guerra, um d'elles de quem era amigo e com quem tinha relações desde o principio da campanha, o capitão Jorge.
Com gosto abracei os dois unicos jovens officiaes portuguezes que se acharam na batalha e que tinham sido meus companheiros de viagem desde o Porto até ao Algarve, o tenente Guimarães, hoje Visconde da Villa da Praia de Macau, onde foi Governador, e o Capitão de Mar e Guerra, Sergio, Ajudante de Campo de Sua Magestade.

Não me proponho descrever a batalha do Cabo de S. Vicente, do dia 2 de Julho [na verdade, 5]. Acha-se descripta em diferentes documentos officiaes. Foi um feito extraordinario: basta dizer que o Almirante Napier, com fragatas, abordou e aprisionou duas naus. 
Das enxovias de Lagos sahiu um jovem hespanhol que residia no Algarve, irmão do bem conhecido consul de Hespanha, D. Nicasio, para hospedar o Duque na sua casa, onde não residia havia cinco annos, tanto era o tempo em que jazia nas masmorras de D. Miguel, victima das suas opiniões liberaes, apesar de ser subdito estrangeiro. 
Depois de coadjuvar o Almirante Napier na difficil posição em que estava e de dar uma tal ou qual organização a duzentos marujos e soldados da Brigada que deviam seguir a nossa Divisão por terra, tendo combinado com o Almirante os movimentos, devendo este seguir viagem para a foz do Tejo conduzindo o Duque de Palmella, dirigiu-se o Duque da Terceira para Silves e d'aqui para S. Bartholomeu de Messines, onde reuniu as suas duas Brigadas e se preparou para marchar sobre a provincia do Alemtejo.
Quando nós entravamos em Messines, sahia o famoso Remexido, para entrar em campanha a favor do Usurpador com as suas guerrilhas, e que tantos annos fez tremular a bandeira de D. Miguel nas montanhas do Algarve depois da Convenção de Evora-Monte. Desde aquelle dia nunca mais voltou a Messines; conheci muito sua mulher, porque foi patrôa do General Schwalbach.
Vinte e quatro horas depois de chegarmos a Messines, mandou o Duque fazer um reconhecimento pelo Major José Pedro de Mello, levando debaixo de suas ordens o alferes de Cavallaria 5 apresentado e as praças que o seguiam. A uma legua de Messines foram surprehendidos pelo Remexido, aprisionados e conduzidos a Lisboa. O alferes e os soldados eram desertords do Exercito miguelista e o Major Mello era tido e conhecido por um dos maiores liberaes do Exercito; receámos muito que o patíbulo fosse a triste sorte dos nossos camaradas.
Avançámos sobre Santa Clara. Remexido retirava na nossa frente com os seus vinte guerrilhas, sem lhe podermos tocar, graças ás montanhas da Serra do Algarve. Entrámos em Santa Clara á hora da missa, porque era um dia santificado. O prior, ao levantar a hostia, proclamou a Rainha e a Carta.
Sendo este sacerdote um individuo de toda a confiança, o Duque incumbiu-o, nessa noite, duma missão delicada. O Coronel Domingos de Mello tinha feito um movimento sobre Mertola com parte do batalhão francez, e o Duque queria preveni-lo do nosso movimento: o prior foi incumbido d'esta commissão, mas, nessa mesma noite, cahiu nas mãos das forças de D. Miguel e foi fusilado.
Marchámos sobre Garvão, sem encontrar o inimigo, porque nos não esperava em posição alguma. Alli cahiram doentes muitos soldados e officiaes, entre estes meu cunhado D. Manuel da Camara, com umas sezões terríveis que davam grande cuidado ao facultativo. O General mandou-o conduzir para Odemira por uma guerrilha, com grande risco de ser aprisionado.
Continuámos a marcha sobre Messejana e chegámos alli de tarde, encontrando uma força inimiga que estava em observação do nosso movimento.
O Duque da Terceira estabeleceu o seu Quartel General em casa da senhora Brito, mãe do ex-Major de Lanceiros, Brito, onde fomos recebidos alegremente e ás mil maravilhas. A filha da dona da casa, elegante menina, cantando optimamente, acompanhada pelo celebre pianista Porto, fez-nos esquecer as fadigas da trabalhosa campanha das serras do Algarve, e o meu camarada Mousinho improvisou com grande facilidade, sendo esta noite a ultima vez que ouvi seus improvisos.
O General Mollelos esperava-nos em Beja, com os reforços que recebera, os quaes elevavam a sua força a dois mil e quinhentos homens, e o General Taborda, que vinha em reforço de Mollelos, occupava Cuba com mil e quinhentos homens.
Depois dum Conselho de guerra com os Officiaes superiores, o Duque decidiu-se a fazer um movimento rapido, a marchas forçadas, sobre o Sado, e d'aqui sobre Almada, para esperar, neste ponto, que o Almirante Napier forçasse a barra de Lisboa.
Passámos o Sado no dia 20 de Julho em Porto de Rei, onde encontrámos os lavradores daquellas paragens, que formavam uma forte guerrilha, montados em bons cavallos.
Seguimos sobre Alcacer, a marchas forçadas, e, aqui, o juiz de fora, com os voluntarios realistas da terra, ficando surprehendidos porque julgavam que era uma fraca guerrilha que pretendia occupar a villa, vieram ao nosso encontro, e o Quartel-Mestre General, á frente dalguns lanceiros e de nós outros, officiaes de Estado Maior, carregou-os, depondo elles as armas.
Bivacámos, depois, na famosa propriedade de Palma, dos Condes do Sabugal, e no dia 22 de madrugada estavamos á vista de Setubal. A vanguarda era feita pela guerrilha dos lavradores do Sado, que, vendo quatro peças em bateria junto a Setubal, debandaram sobre a testa da nossa columna, atropelando soldados e alguns officiaes, fazendo persuadir os Generaes Terceira e Schwalbach de que eramos carregados pela Cavallaria, ordenando-se, por isso, a formação de quadrados. O Duque nunca mais quiz uma tal vanguarda.
O inimigo pretendia defender Setubal com uns mil e quinhentos homens, entre milicianos e linha, e quatro peças de artilharia, mas em vinte minutos estava tomada a artilharia, tres bandeiras, e derrotada completamente toda a força.
Atravessámos Setubal, perseguindo o inimigo, e não fizemos alto senão na Quinta do Escoural, do Conde da Povoa, onde se reuniu a Divisão e se estabeleceram os postos avançados.
O Duque veiu por um momento á villa de Setubal, para communicar com a Esquadra, e á noite estabeleceu o seu Quartel General na referida quinta.
Ao amanhecer de 23, atravessámos Azeitão. Aquele aprazível sitio estava habitado por uma quantidade de senhoras e cavalheiros da melhor sociedade de Lisboa, que se julgavam compromettidos. Era tal o terror que os dominava, que nem um viva nos deram.
Depois dum pequeno descanso, continuámos a marcha sobre Amora, onde encontrámos o General Telles Jordão, com uma força, para nos reconhecer.
O General, decidido a dar batalha, fez um pequeno descanso e organisou a sua columna de ataque. Avançámos pela estrada que conduz á Piedade, estendendo linhas de atiradores sobre os flancos direito e esquerdo da estrada.
O inimigo retirava-se de posição em posição, com o fim de nos attrahir á Cova da Piedade e fazer alli uso da sua Cavallaria, unico terreno favoravel para isso.
O Duque collocou-se á testa da columna de Caçadores 2, com o General Schwalbach e os seus Estados Maiores, marchando o batalhão, a quarto de distancia, seguido por Caçadores 3. Desembocámos no vale da Piedade, onde eramos batidos, em flanco, por duas peças que estavam em bateria, do lado de Almada, sahindo um fogo terrivel das janellas e portas das diferentes casas, estando a certa distancia dois esquadrões de cavallaria, promptos a carregar-nos.
Os Generaes, com os Estados Maiores, collocaram-se no centro da columna, para que as companhias da vanguarda pudessem fazer fogo, e desde logo os dois esquadrões inimigos nos carregaram a fundo, e, á voz do General Schwalbach, receberam uma descarga á queima-roupa, que muito damno lhes fez.
O Major do 3, Vasconcellos, que não se poude collocar em columna contigua com Caçadores 2 na primeira carga, saltou, com Caçadores 3, da ponte da Piedade abaixo e formou logo a quarto de distancia.
Por uma segunda vez fomos carregados, e a Cavallaria inimiga ficou completamente derrotada. Junto ás baionetas de Caçadores 2, encontrei morto um jovem furriel do Regimento de Cavallaria 4, que tinha servido comigo, o que muita pena me fez.
Os Caçadores avançavam e a Artilharia inimiga apresentou-se toda. Os esquadrões, que nos tinham carregado e que estavam na retaguarda da Artilharia, puzeram pé em terra e deram vivas á Rainha, e o Coronel Romão, á frente dalgumas companhias do seu batalhão, occupou o caes de Cacilhas, matando o General em chefe inimigo, Telles Jordão.
O General Schwalbach, que tinha feito um movimento sobre a esquerda para occupar Almada, que estava fortemente guarnecida, mandou um official allemão, chamado Jorge, como parlamentario á guarnição, para se render; foi este barbaramente acutilado, vindo morrer entre as fileiras da nossa vanguarda. Era um jovem official de muito boa familia.
O General Duque da Terceira ordenou que se sitiasse a posição de Almada, mas que não se fizesse movimento algum. O castello rendeu-se na madrugada seguinte, quando descobrimos a bandeira azul e branca no Caes do Terreiro do Paço e do Sodré, e, no Tejo, grande quantidade de botes que se dirigiam a Cacilhas com individuos que nos vinham felicitar pelo nosso triumpho. Entre as muitas pessoas que atravessaram o Tejo, vinha o Ministro de Inglaterra.
O Ministro de Hespanha, que era o meu intimo amigo Cordoba, ficou prisioneiro, achando-se ao lado de Telles Jordão, vestido à paisana; tinha passado o Tejo por simples curiosidade. Deu-me por testemunha de que era o General Cordoba e Ministro de Hespanha, e o Duque, sabendo das relações de amizade que elle tinha comigo, encarregou-me de o acompanhar a bordo da fragata hespanhola ancorada no meio do Tejo, e um escaler da fragata alli nos conduziu, trazendo-me depois para Cacilhas, o que muito estimei, porque, se não tivesse sido assim, seria aprisionado pelos escaleres do Arsenal, que encontrei na volta, rondando o Tejo.
Quando o castello de Almada se rendia, o Duque de Cadaval retirava, com todas as forças, de Lisboa, e os seus habitantes proclamavam a Rainha, entrava o Visconde de Mollelos em Setubal, á frente de quatro mil homens.
Os escaleres do Arsenal e as barcaças chegaram a Cacilhas pelas dez horas da manhã, para transportarem a Divisão para Lisboa. O Tejo estava o mais sereno possivel e uma grande esquadrilha de botes embandeirados fazia alas á Divisão do Exercito Libertador, desde Cacilhas até ao Caes da Pedra. O enthusiasmo era inexprimivel.
O General Duque da Terceira, com o seu Estado Maior, vinha numa grande galeota, e, emquanto atravessava o Tejo, modestamente conversava com o seu antigo fornecedor de moveis, vinhos e de tudo quanto eram elegancias, o bem conhecido usurario Latance.
A entrada do bravo General em Lisboa foi digna dos seus feitos militares.
Mendizabal, antes da batalha naval do Cabo de S. Vicente, partiu para Inglaterra, num dos vapores da nossa Esquadra, o que tornou furioso o Almirante Napier e com razão porque grande falta lhe fazia aquelle navio para operações.
Mendizabal, que não se lembrava senão dos seus fundos, precisava estar na praça de Londres, para attender aos seus interesses, e tanto elle como o negociante Silva, mais tarde Barão de Lagos, sabendo primeiro do que ninguem o desembarque no Algarve e a tomada da Esquadra, ganharam umas sommas avultadas, jogando nos fundos portuguezes. 
Emquanto nós avançávamos sobre a provincia do Alemtejo, o General de D. Miguel, Conde de S. Lourenço, entendendo que a Divisão do Duque da Terceira faria uma grande quebra nas forças que defendiam as linhas do Porto, atacou vivamente a cidade no dia 5 de Julho, por diferentes pontos, sendo o principal a Quinta do Wanzeller.
O General Saldanha repelliu os ataques com vigor em todos os pontos, tendo o inimigo uma grande perda e nós muitos officiaes feridos e mortos, e alguns d'estes muito distinctos. O Brigadeiro Duvergier foi mortalmente ferido, fallecendo poucos dias depois do combate. O Major D. Fernando de Almeida, Ajudante de campo do General Saldanha, foi morto no campo de batalha.
Neste dia houve uma brilhante carga commandada pelo Major Pimentel, que foi promovido, no campo, a Tenente-Coronel.
Os Ajudantes de campo do General Saldanha foram condecorados com a Ordem da Torre e Espada, por se haverem distinguido naquella carga.
Foi a ultima acção que commandou o Conde de S. Lourenço, porque, poucos dias depois, tomou o commando do Exercito miguelista o General Bourmont.
Aqui acabo a quarta parte das minhas Memorias, porque julguei acabada a minha longa emigração, logo que desembarquei no Caes do Terreiro do Paço, entrando na minha terra natal e onde tinha a minha casa.»

* * *

Fonte
BARRETO, José Trazimundo Mascarenhas, Memórias do Marquês de Fronteira e Alorna D, José Trazimundo Mascarenhas Barreto (ditadas por êle próprio em 1861), Partes III e IV, (Coord. Ernesto de Campos de Andrada) Coimbra, Imprensa da Universidade, 1926. pp. 331 – 346.
Disponível para leitura na Biblioteca Nacional Digital em http://purl.pt/12114

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