sábado, 11 de janeiro de 2025

Lembrança das Épocas e Acontecimentos Notáveis (Fernando António Machado, 1794-1815)

LEMBRANÇA DAS EPOCAS E ACONTECIMENTOS NOTAVEIS

[Fernando António Machado]

In: capitão António Dias, “Diário de um jurista dado as armas” [Fernando António Machado], Boletim do Arquivo Histórico Militar, n.º 16, 1946, Famalicão, pp. 89-123.


Época 1.ª [1794-1800]

Em setembro de 1794, fui para Coimbra a fim de principiar os meus estudos (tinha então 16 anos); e desde outubro daquele ano até o fim de julho de 1795, estudei e fiz exames com aprovação de Lógica, Retórica e Geometria. Em outubro de 1795, matriculei-me no 1.º ano Jurídico, e pelo Natal desse mesmo ano tomei ordens menores no Paço Episcopal de Coimbra. Em 13 de Junho de 1799, tomei o grau de Bacharel na Faculdade de Leis; e em 31 de julho de 1800, fiz a Formatura. Desde o princípio do 3.º ano até a formatura fui sustentado sempre em Coimbra por minha mãe, que me não faltou com coisa nenhuma. Meu pai achava-se ausente na Ilha Terceira, cidade de Angra.


Época 2.ª [1801-1807]

Todo ano de 1801, subsequente à minha formatura o passei em S. Maria de Poiares na companhia de minha tia Joaquina por ocasião da morte de seu marido e meu padrinho Fernando José Vasques Catana.

No ano de 1802, fui pela vez primeira a Lisboa para tratar não só da arrecadação do espólio que ficou por falecimento de meu pai, que nessa ocasião morreu no mar vindo da cidade de Angra, mas também para diligenciar a favor de meu irmão Francisco a propriedade do ofício de Escrivão dos Órfãos da vila de Seia que ficou vago por falecimento do dito meu pai.

Em outubro de 1803, voltei de Lisboa para casa e aí exercitei o ofício de advogado até os fins de junho de 1808, em que se fez a revolução de Portugal contra o intruso governo francês.


Época 3.ª [1808-1814]

Por ocasião da Revolução de Portugal contra o intruso governo francês, me resolvi à vida militar pondo de parte a de Advogado em que me achava e, em 3 de Agosto desse ano de 1808, me alistei como soldado no Corpo Académico Militar, que foi dos primeiros que nessa época se organizou, e aí servi até 6 de outubro do mesmo ano em que o dito corpo foi licenciado por ter sido expulso de Portugal o exército Francês comandado por Junot.

Voltei então para casa aonde me conservei até tantos de abril de 1809, em que tornei a reunir o dito Corpo Académico Militar, que por ordem superior foi mandado de novo pegar em armas por motivo da nova invasão do exercito francês comandado por Soult, que ocupou toda a província do Minho e a cidade do Porto; e desta vez me conservei em armas e exercício ativo, sempre como militar , até 3 de setembro do mesmo ano de 1809, em que o dito corpo depois de largas marchas e bem distintos serviços recolheu ao seu quartel de Coimbra, achando-se também já a esse tempo Portugal livre daquele exercito francês de que era chefe Soult.

Seguiu-se em 1810 a 3.ª invasão de Portugal pelo exército francês comandado por Massena, e porque já a esse tempo se achava organizado o Corpo de Guias do Exército, e eu me achava com os requisitos que se exigiam para poder entrar nele, propus-me a isso, e fui com efeito despachado 2.º Tenente no dito corpo em 21 de Setembro daquele ano de 1810, sendo então seu Coronel e Comandante o Sr. [George] Scovell [1774-1861], inglês de nação a quem sou muito obrigado.

Era o Corpo de Guias, um corpo de Cavalaria organizado por Lord Wellington General em Chefe dos Exércitos Aliados para servir em benefício comum dos mesmos exércitos; porém era mantido, pago, e sustentado em tudo pelo governo inglês. Compunha-se de 340 homens com pequena diferença pela maior parte alemães e piemonteses. O seu comandante era sempre um dos mais hábeis oficiais ingleses, e quanto aos mais oficiais deviam ser portugueses com as qualidades de serem pessoas de boa educação e costumes, de literatura, e que soubessem falar e escrever a língua francesa; não só por que o Comando e trato familiar do dito corpo era em francês, pois que até os soldados o deviam falar; mas também, e é esta a razão principal, por ser um corpo destinado a servir as ordens de diferentes generais, de diferentes nações, já ingleses, já alemães, já holandeses, etc. E por isso era indispensável o falar-se uma língua geral. O seu serviço consistia em várias obrigações, sendo as principais, o fazer reconhecimento, e manter a comunicação geral do exército; nos dias de ação era dividido às ordens de diferentes generais, e os oficiais tinham de ordinário o exercício de ajudantes de campo. Quando os exércitos deviam fazer algum movimento ou para quaisquer operações, as ordens de mais consequência do General em chefe eram comunicadas de palavra, ou conduzidas em escrito pelos oficiais deste corpo de quem se fazia a maior confidência. O seu trabalho era enorme, porém o seu soldo era o mais avultado e bem pago que havia no exército. Os oficiais portugueses entravam para este corpo a consentimento do governo português, e os serviços aqui feitos eram olhados como feitos à nação portuguesa, tanto assim, que os que tinham alguma patente portuguesa antes da entrada no dito corpo, ou a alcançavam depois, a ficavam conservando com o mesmo vencimento e antiguidade, tendo com tudo o seu exercício no dito corpo de Guias.

Em 5 de agosto de 1811, tempo em que já era 2.º Tenente do Corpo de Guias, e achando-me eu com este em Espanha na vila de Guinaldo, fui despachado Alferes para o Regimento de Infantaria portuguesa n.º 2; porém fiquei sempre conservando por mandado do Governo àquela primeira Patente e exercício do corpo de Guias, e passei a receber o soldo de ambos os Corpos em que fiquei sendo oficial.

Em 6 de outubro de 1812, achando-me na cidade de Toro em Espanha, fui despachado 1.º Tenente no corpo de Guias em que já era 2.º Tenente.

Em 3 de novembro de 1813, achando-me em S. João da Luz em França, entrei na promoção de capitão para o mesmo corpo de Guias, cuja patente não se me chegou a verificar por causa da paz que sobreveio; porém ainda tive o exercício de capitão e comandei companhia sete para oito meses.

Em 30 de setembro de 1810, sendo já 2.º tenente do corpo de Guias, fui mandado por Lord Wellington General em Chefe, na ocasião que o Exercito retirava de Coimbra para as linhas, reunir com um piquete do meu corpo a divisão do General Hill que marchava pelo lado do Espinhal, e no Caminho me encontrei junto do lugar de Seira nas margens do Mondego, com um grosso piquete de cavalaria francesa, que tinha avançado pelo lado da Portela, e sendo obrigado a retirar-me pela superioridade de forças, fui perseguido a fogo de clavina até as alturas do Senhor da Serra perto de Semide. Tive um soldado e dois cavalos levemente feridos, e ficou-me prisioneira toda a minha bagagem com o criado e besta que a conduzia, e fiquei por mais de mês e meio só com a roupa que tinha vestida nessa ocasião, até que estando nas linhas obtive licença de três dias para ir a Lisboa para aí me refazer de fato.

Em 11 de junho de 1814, achando-me em Saint-Sever, cidade de França, fui roubado por um criado, que me levou grande parte da roupa com 102 Duros.

Por duas vezes fui mandado em parlamentário ao exército francês. A primeira foi de Quadrazais ao quartel-general de Marmont, que se achava em Guinaldo, para receber três inglesas que tinham ficado prisioneiras na retirada que fizemos das margens do Águeda quando não pudemos impedir o socorro com que o dito general Marmont veio à praça de Ciudad Rodrigo. A segunda foi em Madrid a 19 de agosto de 1812, quando fui mandado acompanhar o coronel Delance [William Howe De Lancey KCB (1778-1815)], que foi intimar aos franceses que se achavam fortificados no retiro, que se rendessem no termo de duas horas, senão que se procederia a escalada ficando sujeitos às leis da guerra em casos tais.

Em 27 de julho de 1814, achando-me em Bordéus, recebi ordem, bem como os mais oficiais do meu Corpo, para voltarmos a Portugal; já a esse tempo estava feita a paz e tratados de Paris.

Em 30 de julho dito, saí de Bordéus com parte do meu corpo e atravessando parte da França e toda a Espanha, entrei em Lisboa a 23 de setembro do mesmo ano pelas três horas da tarde.

Tanto que entrei em Lisboa fui avisado, que o embaixador inglês que aí se achava, Mr. Railing, tinha ordem para demitir do serviço todos os oficiais do corpo de Guias, que tendo permissão [no original, promissão] do governo português, não quisessem passar a Inglaterra com uma Patente de acesso (porque o corpo de Guias era meramente inglês, mas que igualmente servia com utilidade do exército português e por isso foi organizado com oficiais portugueses a consentimento do nosso mesmo governo, que lhes assegurou o mesmo ou maior aumento como se servissem em regimentos portugueses, como já fica dito em outra parte) e ao dito embaixador me dirigi em 2 de outubro do mesmo ano para lhe pedir a minha demissão, que obtive em 12 desse mês.

Logo depois tratei de obter também demissão da patente que tinha de alferes no regimento português de infantaria n.º 2 e, para esse fim, me dirigi ao marechal Beresford comandante em chefe do exército português a quem entreguei o meu requerimento em 14 de outubro desse mesmo ano de 1814, e obtive a demissão em 23 do mesmo mês, como consta da ordem do dia com essa data.

Nesse mesmo tempo que obtive a demissão de alferes do regimento português, apareci novamente despachado tenente para o mesmo regimento (talvez em razão de promoção que já antes se tinha feito, ou como quer que seja), porém como o meu plano era de não continuar com a vida militar, fiz também suprimir este segundo despacho servindo-me de empenho para isso o coronel Sepúlveda, ajudante de ordens do marechal Beresford.


Principais combates campais, e ataques de Praças em que me achei como militar

Portugal: De Alvergaria (11 de maio de 1809), Do Porto 13 de maio de 1809), Do Bussaco (27 de setembro de 1810), Da Redinha (10 de abril de 1811), De Foz-d’Arome, Do Sabugal.

Espanha: De Fontes d’Honor (5 de maio de 1811), De Badajoz (6 de abril de 1812), De Ciudad-Rodrigo, De Salamanca (22 de julho de 1812), De Burgos, De Vitoria, De S. Sebastião de Biscaya* De La /aca —

França: De Ortez, De Vic (aqui foi morto o meu Coronel Henrique Storgeon), De Toiouze —


Cidades em que tenho estado a maior parte por ocasião da Guerra.

Portugal: Lisboa, Leiria, Coimbra, Aveiro, Porto, Penafiel, Lamego, Pinhel, Miranda do Douro, Guarda, Castelo Branco, Portalegre, Elvas.

Espanha: Ciudad Rodrigo (Praça de armas), Madrid, Salamanca, Zamora, Toro, Valladolid, Burgos (tem um Forte), Palencia, Santander (porto de mar), Frias, Arrioga, Vitória, Bilbao (porto de mar), Toloza, Pamplona (praça de armas), Segovia (Tem um Castelo), Placencia, Badajoz (praça de armas), Coreia, S. Sebastião de Biscaya (porto de mar).

França: Bayona (porto de mar), Pau, Ortez, Tarbes, Vic, Tolouse (tem o canal de Languedoc, que comunica com o Mediterrâneo), Auche, Mondemarçan, Daxe, S. Severe (tem um grande tanque de água sulfuria no meio da praça), Bordeos (porto de mar).

Rios principais que tenho passado por ocasião da Guerra, e de que tenho Lembrança.

Portugal: Tejo, Mondego, Douro, Vouga, Dao, Tamega, Coa, Zêzere, Alva.

Espanha: Tormes (em Salamanca), Agueda (em Ciudad Rodrigo), Guadiana (em Badajoz), Tejo (em Alcantara), Douro (em Samora etc.), Esla, Pizoerga, Ebro

França: Nive, Adour, Garona, Canal de Languedoc.

G. g.ª

Como acaba aqui a minha vida militar, sou obrigado a confessar, que durante ela tive prazeres e incómodos sem conto, e que se me propusesse a relatá-los, seria obra de grosso volume. Fui sempre muito querido tanto dos meus superiores, como dos mais oficiais meus camaradas, e soldados; e gozei sempre entre eles da maior reputação. Fui sempre muito bem visto nos diferentes países em que me achei; e dos inumeráveis patrões que tive por toda a parte, não me lembra um de quem tenha escândalo [escandola, no original].


Época 4.ª

Viagem que fiz ao Rio de Janeiro em 1815 [1818, no original]

Achando-me em Lisboa reduzido a simples paisano pela baixa ou demissão que obtive das duas patentes que tinha, inglesa e portuguesa; estive muito resoluto a voltar para casa, e esperar aí a decisão de alguns requerimentos que pretendia fazer tendentes a vida civil: e mais se aumentava aquela minha resolução vendo-me não só cansado da Guerra de tantos anos, mas também pelas saudades que tinha de minha mãe e mais família, que já não via a inúmeros tempos. Acrescendo mais o achar-me gravemente doente com uma febre que me atacou cruelmente tanto que entrei em Lisboa vindo da França.

O capricho porem de não voltar a pátria simples particular como tinha saído; e também por experiência que tinha de que requerimentos e negócios desamparados raramente se logram, tomei a nova resolução de passar ao Rio de Janeiro aonde se achava S. A. R. , e para evitar qualquer persuasão em contrario, pratiquei muito excesso de ocultar esta segunda resolução mesmo a mãe e mais família, que me esperava em casa todos os dias, e só lhe fiz aviso na véspera do meu embarque. Tanto assim, que nem recurso nenhum pedi a casa, de forma que me arranjei para a viagem com o producto de 4 cavalos que vendi em Lisboa e com o resto dos meus soldos vencidos que aí recebi, vindo a fazer por tudo 700000 reais.

No dia 4 de janeiro de 1815, embarquei a bordo do Navio Ásia Grande que era Capitão José Lopes de Gouveia, estava eu ainda meio convalescente da minha moléstia.

No dia 5, levantámos ferro pelas 11 horas da manhã, e quando 5 da tarde já tínhamos perdido terra. Na mesma embarcação iam também vários oficiais e oficiais inferiores do Exército de Portugal, que S. A. R. mandou ir para o serviço do Exército do Brasil e eu, não obstante a demissão que já tinha, era ainda olhado por todos como oficial pois continuei a usar de meus uniformes.

No dia 9, pelas 6 horas da manhã, passámos em distância de pouco mais de tiro de bala da ilha de Porto Santo; e quando eram 5 da tarde desse mesmo dia, passámos também à vista da ilha da Madeira. Durante a viagem tivemos alguns temporais de bastante incómodo, como foi na noite de Entrudo desse mesmo ano em que sofremos um tempo tão forte, que chegou a partir-se pelo meio o masto de proa, lançando-se o mar repetidas vezes sobre a coberta do navio.

Também em a noite do dia 4 de fevereiro estivemos em grande risco por se ter pegado o fogo na embarcação comunicado de um fogão que estava contíguo ao masto grande, o que aconteceu seriam 11 horas da noite, e decerto haveria grande incêndio quando se lhe não acudisse logo no seu princípio.

Na passagem das ilhas de Cabo Verde sentiu-se uma bem sensível mudança de atmosfera pela gracez e humidade do ar, mas que nos não prejudicou, porque sendo semelhante clima mais temível durante a noite por causa da chamada cacimba (espécie de orvalho) nós nos recolhíamos muito cedo aos camarotes enquanto estivemos naquelas alturas.

Ao passar da Linha ou Ecconoxial, sentimos um calor intensíssimo por ficar o sol a prumo (aconteceu em 3 ou 4 de fevereiro) e mais sensível se nos fez ainda, por nos demorarmos aí seis dias em vigorosa calmaria.

No dia 14 de fevereiro chegámos, seriam cinco horas da manhã, a Cabo Frio (distante um grau, ou 18 léguas do Rio de Janeiro); e no dia 15, fundeámos seis horas da tarde junto ao chamado Pão d’Açúcar (morrião ou Serro elevadíssimo em figura de pirâmide que fica na embocadura da barra do Rio de Janeiro).

No dia 16, logo de manhã constando na cidade, que a nossa embarcação conduzia vários oficiais do Exército de Portugal que acabava de coroar-se de louros, concorreram a bordo muitos senhores a visitar-nos dando-nos muitos abraços em sinal de gratidão pelos trabalhos que tínhamos tido na campanha e ali mesmo nos fizeram conduzir em refresco muitas frutas do país, como banana, ananás, caju, manga , goiaba e nesse mesmo dia 16, saltámos em terra pelas 4 da tarde.


Acontecimentos mais notáveis depois da minha entrada no Rio de Janeiro

Tanto que saltei em terra, tratei logo de arrendar casa em que vivesse; mas por que só me fazia conta no centro da cidade para poder melhor manegar os meus negócios, e me foi difícil encontrar no sítio que pretendia, fui no entretanto habitar na Hospedaria da chamada Inês que fica na rua larga do Palácio aonde vivi 15 dias fazendo sociedade com um tenente do Regimento de Cavalaria n.º 11 (de Almeida) chamado Luís Godinho Gonçalves, natural das Pias, comarca de Tomar, sujeito de muita honra e merecimento. Depois mudei para a rua da Vala aonde arrendei casa pagando a renda de 6400 reais por mês.

Logo que me estabeleci na hospedaria da sobredita Inês, julguei de meu dever apresentar-me a S. A. R., porém antes de o fazer consultei a mim mesmo se me apresentaria vestido a paisana, ou com os meus uniformes militares: e decidi, que com estes, não só por me achar ainda dentro dos seis meses da minha demissão; mas também por que com eles me seria mais fácil testemunhar a S. A. R. as minhas fadigas na campanha, e ser mais com bem atendido nos meus requerimentos.

Achavam-se nessa ocasião SS. AA. RR. ausentes da Corte, o Príncipe no seu Palácio de Santa Cruz a 14 Léguas de distância, e a Princesa na sua chácara (assim se chamam as quintas no Brasil) do Botafogo distante meia légua da cidade e parti para Santa Cruz com o fim de beijar a mão a S. A. R. e cheguei ao seu palácio no dia 20, seriam três horas da tarde aonde encontrei imensa fidalguia e pretendentes.

Logo aí me apareceu o marquês de Angeja com quem já tinha conhecimento no exército do tempo em que ele foi ajudante de ordens do marechal Beresford; cujo fidalgo me conduziu a uma grande sala em que costumam esperar pessoas de graduação, e me disse, que ali deveria esperar as ordens de S. A. Logo depois aí me apareceram outros muitos que não conhecia, e todos me tratavam com muita afabilidade perguntando-me várias coisas de Portugal e do exército. Passado algum tempo, me apareceu também o Príncipe D. Pedro e Infante D. Miguel a quem beijei a mão, e me trataram com muito carinho fazendo-me várias perguntas, e gabando-me muito o meu uniforme militar, como também a bondade da minha espada, que na verdade era ótima, dignando-se o Príncipe D. Pedro recebê-la em suas mãos para melhor a poder examinar. Ela era inglesa, e do uniforme dos Hússares.

Naquilo se passou coisa de hora e meia, até que o Príncipe Regente N. S. me fez conduzir pelo conde de Parati, seu camarista particular e efetivo, a uma sala interior do Palácio aonde o encontrei só, e me recebeu mais com o carinho de pai, do que com o caracter de soberano. Demorou-se comigo coisa de uma hora fazendo-me imensas perguntas acerca da Guerra e dos diferentes combates da Península, dos costumes que encontrei nos diferentes países que tenho andado, da natureza dos climas, suas produções etc. etc., e explicando-me ele mesmo muito das coisas que eu havia de encontrar no Brasil.

No fim de extensa conversa que teve comigo, me agradeceu o bom espírito que tinha mostrado voluntariamente pela defesa da pátria e do trono, dizendo-me, que ficava muito no seu real agrado, e determinando-me, que me não retirasse sem jantar, ao que me escusei modestamente, porém em vão por que ele instou.

Retirei-me da real presença, e logo um moço fidalgo, comendador chamado Brocót, me conduziu a uma sala aonde encontrei uma mesa esplêndida e muitos senhores do serviço do Paço, que todos se dignaram sentar-se a mesa comigo, e me fizeram muitas honrarias. Fiz a primeira saúde dirigida a S. A. R., e pondo-se todos de pé, corresponderam a um tempo, e enfim tanta bondade e obséquios me causaram estranheza.

Nada falei nessa ocasião a cerca das minhas pretensões, por não me parecer próprio falar nelas quando tinha ido simplesmente apresentar-me a S. A. R. para lhe beijar a mão e saber da sua saúde, e portanto reservei isso para outra audiência.

No dia 21 do mesmo mês, retirei-me para o Rio de Janeiro, e no dia 22, fui apresentar-me à Princesa N. S. no seu Palácio do Botafogo aonde me fez um grande acolhimento e se entreteve comigo largo tempo versando a maior da conversa acerca do que eu tinha encontrado de melhor em Espanha, e do estado em que se achavam os seus magníficos e pomposos palácios de Madrid , Escorial, e Santo Ildefonso os quais eu tinha examinado bem pelo miúdo em 1812.

No dia seguinte 23 de fevereiro, fui também apresentar-me a D. Fernando, marquês de Aguiar, e Secretário de Estado dos Negócios do Reino e da Guerra, que me tratou muito bem, e me deu as melhores esperanças relativamente aos meus negócios. E nesse mesmo dia de tarde, igualmente me apresentei ao Governador das Armas, como tinha de obrigação visto que usava de uniformes militares.

No dia 25 desse mesmo mês de fevereiro, chegou S. A. R. a Corte vindo da Santa Cruz, e como eu já tinha feito a esse tempo todos os cumprimentos que me pareciam de obrigação e de politica, me dirigi no dia 26, ao seu palácio de S. Cristóvão a meia légua da cidade no qual S. A. R. costuma passar a maior parte dos dias. Aí fui recebido por ele com afabilidade igual a de Santa Cruz, e passando aos meus negócios, lhe expus a tenção que tinha de passar a vida civil da magistratura visto estar finda a guerra.

S. A. R. a principio não aprovou muito aquela minha deliberação, e antes com maneiras paternais me dizia, que era melhor continuar com a vida militar, e que me prometia vantagens quando me resolvesse a servir no Exército do Brasil, que passava a organizar-se; e que mesmo quando inteiramente quisesse largar a vida militar e entrar na Civil, que o mesmo Brasil me oferecia muito maiores vantagens, por que se tinham criado muitos lugares, e que podia entrar mesmo em lugar graduado em S.° Banco.

Então eu com a modéstia devida lhe expus as fortes razões que tinha para voltar quanto antes a Europa, e entre as muitas razões que produzi, foi a de não ter visto há anos minha mãe viúva e mais família; acrescentando mais, que nada sabia a muitos tempos da Casa, nem o estado atual dela, tudo por causa da guerra: a razão de querer ver a viúva minha mãe, comoveu muito a S. A. R., e dizendo que eram justas as minhas razões, me concedeu licença de pedir Lugar para Portugal.

Tratei logo de dar princípio aos meus requerimentos e comecei por me habilitar para fazer a minha Leitura no Desembargo do Paço da Corte do Rio de Janeiro, aonde com efeito li em 27 de abril desse mesmo ano de 1815, e me saiu para dissertação a Lei 4.ª D. de Servito Pred. Rustic.: argumentou-me na análise o desembargador Bernad.° Teixeira, e em sintética o desembargador Mosqueira Procurador da Coroa.

Não deixou de ser aparatosa a minha leitura pela concorrência de todos os desembargadores que nesse dia se apresentaram em mesa grande e plena, como também pela de bastantes amigos paisanos e militares que me quiseram obsequiar, que suposto não podiam estar na mesma sala da Mesa Grande, com tudo a consentimento do presidente se lhes abriu uma porta travessa para dali presenciarem. Dizem que este ato me dera muito crédito e louvor geral; porém quanto a mim só direi, que não fiz desonra aos bacharéis.

No dia seguinte 28 de abril, fui ao Palácio de S. Cristóvão dar parte a S. A. R. da minha leitura, e pedir-lhe licença de fazer o meu requerimento para o despacho; no que S. A. consentiu logo, dizendo-me que pedisse um lugar bom, e que entregasse o requerimento ao Ministro de Estado marquês de Aguiar. Assim o pratiquei requerendo uma Corr.ão ordinária; porém o dito marquês se opôs a minha pretensão dizendo, que não era da intenção de S. A. era costume recompensar-se serviços militares com Postos Civis, ou vice versa, e, portanto, que pelo que tocava aos meus serviços militares ficariam intactos até achar coisa que pudesse pedir compatível com eles; e pelo que dizia respeito à Magistratura ou Lugar de Letras, que devia entrar como os outros por lugar de S.ª entrança; e não me foi possível fazê-lo mudar de opinião, de forma , que a instâncias do dito Ministro de Estado fui obrigado a nomear ali mesmo três lugares de S.ª entrança, que foram Covilhã, Fundão e Tondela.

No dia 5 de maio desse mesmo ano, me disse em audiência aquele Ministro de Estado, que estava despachado para Juiz de Fora de Covilhã. Agradeci por que assim o devia fazer por política, mas sempre com ânimo de tornar a dirigir-me a S. A. para ver se podia obter mudança para lugar de maior graduação.

No dia 7 de maio, me apresentei em S. Cristóvão e expus a S. A. R. o que tinha passado com o marquês de Aguiar; e perguntando-me que lugar me fazia mais conta, respondi Guarda ou Viseu. Determinou-me, que fizesse um Memorial a esse respeito e que lho entregasse; o que pratiquei nesse mesmo dia a noite em audiência que S. A. deu no Palácio do Rio de Janeiro.

Por Decreto de 12 de maio desse mesmo ano (véspera dos anos de S. A. R.) fui despachado para Juiz de Fora da Cidade da Guarda em virtude da suplica que tinha feito a S. A., ficando desta forma suprimido o despacho de Juiz de Fora de Covilhã.

No dia 12 de junho desse mesmo ano de 1815, achando-me ainda na Corte do Rio de Janeiro a espera de embarcação para voltar a Portugal, recebi a triste notícia pelo Navio Fénix, de ter falecido meu irmão Francisco a 25 de fevereiro antecedente. Esta noticia foi-me extremamente ingrata e sensível por não poder suportar a falta de um irmão, que estimava fundo do coração. Porém se uma mão de ferro me feriu por um lado, a da providência me socorreu por outro, querendo, que eu recebesse tal notícia achando-me ainda na Corte do Rio de Janeiro aonde melhor podia solicitar a meu favor e perante S. A. R. a mercê do Ofício dos Órfãos de que o dito meu irmão foi proprietário.

Como os documentos que recebi de casa relativos ao Ofício continham algumas ilegalidades e me faltou de mais a mais um dos essenciais, que era uma justificação por onde mostrasse, que o dito meu irmão morreu solteiro sem ter cometido erros criminosos no tal Ofício; e que eu era o único irmão a quem assistia o direito de pedir a nova graça: em legalizar tudo isto consumi alguns dias sem dar parte de nada a S. A. R.

No dia 19 desse mesmo mês de junho tendo já os meus papeis arranjados, fui ter com S. A. R. à sua Chácara ou Quinta de S. Cristóvão, e lhe expus as circunstâncias em que me achava pela morte de meu irmão requerendo-lhe ao mesmo tempo a graça do Ofício. S. A. R. mostrou-se enternecido durante o meu discurso, e me perguntou de que modo tinha eu sabido a noticia? Respondi, que pelo Navio Fénix e por uma carta de minha mãe; e por que a levava no bolso, naturalmente puxei por ela, e quase sem reflexão, lha mostrei mesmo fechada ou dobrada, como em sinal do que lhe tinha dito; e S. A. R. se dignou lançar mão dela, como que se fosse um requerimento determinando-me, que sem demora lhe entregasse o meu requerimento para o Ofício.

No dia seguinte 20 de junho entreguei o requerimento, e por Decreto de 22 do mesmo mês de junho de 1815, foi S. A. R. servido fazer-me mercê do dito Ofício de Escrivão da Propriedade dos órfãos da vila de Seia. E é de notar que a carta de minha mãe que tinha deixado em poder de S. A. R. apareceu depois na Secretaria de Estado junto ao meu requerimento em ar de documento, e lá se acha ainda.

Logo depois tratei de requerer alvará para poder nomear serventuário ao dito ofício, cuja graça me foi concedida por decreto de 12 de julho do mesmo ano de 1815.

Não paravam ali os meus requerimentos por que ainda tinha outro entre mãos de que não desconfiava pela disposição que achava em S. A., pois que até me tinha dado licença de o fazer; porém a noticia que recebi da morte de meu irmão, alterou muito o meu plano. O desgosto em que fiquei, o desamparo em que considerei minha mãe e irmãs, e outras muitas razões que se apresentaram ao meu espírito, me determinaram a voltar quanto antes à Europa, e não dar mais um passo pelo que tocava a negócios da corte; e porque o navio Retidão era o mais próximo a fazer viagem, me dirigi ao seu capitão, que me pediu pela passagem e comedorias a quantia de 220000 reis.

Tendo já assim disposto a minha passagem para a Europa, me dirigi em 14 de julho do mesmo ano de 1815 a Chácara ou Quinta de S. Cristóvão para pedir a S. A. licença de me retirar, e ter a honra de me despedir. S. A. R. me perguntou em que navio fazia tenção de partir, respondi, que no Retidão. Ao que me tornou, que dentro em poucos dias saía para Lisboa em certa diligência, e fazendo escala pela Bahia e Pernambuco a nau Medusa, e que seria melhor ir eu nela pela melhor comodidade e segurança. Agradeci esta oferta, que me agradou muito não só por ser mais uma prova da real beneficência para comigo, mas também por me proporcionar mais segurança, comodidade e economia; porque tendo de pagar em navio mercante pelo menos 220$rs. pela passagem e comida, ali só dava 100$ rs. para ser admitido a mesa e rancho dos oficiais da dita nau. E com efeito no dia 15, seguinte aquele em que me despedi de S. A. se expediu Aviso pela Secretaria dos Negócios da Marinha dirigido ao Capitão de Mar e Guerra France Maximiliano, comandante da nau Medusa, para que me recebesse a seu bordo, e assignasse um camarote próprio e decente.


Volta do Rio de Janeiro para Lisboa fazendo escala pela Bahia e Pernambuco

Quando tudo estava já disposto para a minha viagem, e nada mais esperava do que o dia em que a Nau suspendesse ferro e desse à vela, adoeci gravemente com um tumor no pescoço, que se apresentou de muito mau carácter pela inchação repentina e dores cruéis com que me attasalhava: a febre era grande, e o fastio maior. O hábil cirurgião que me tratava chamado Vilela se esforçava em me persuadir, que não devia embarcar naquele estado, chegando a dizer-me, que podia correr perigo de vida, mormente sobre o mar aonde os socorros são muito escassos. Por outra parte os amigos que me rodeavam me proibiam expressa e imperiosamente. Porém tudo foi debalde, porque eu permaneci firme na minha resolução, e constando-me no dia 19 de julho de 1815 que a nau metia panos, e se dispunha a sair, nessa mesma tarde fiz alugar uma sege, que me conduziu ao Cais do Terreiro do Palácio aonde entrei em um bote acompanhado de alguns amigos, e passei para bordo da nau aonde imediatamente me meti na cama, e principiei a ser tratado escrupulosamente por outro hábil cirurgião que aí se achava chamado Peixoto. Fui feliz, por que ao sexto dia de mar, veio o tumor a pontos de poder ser picado, o que se praticou felizmente na noite do dia 27 de julho dito, e logo principiei a ter alívio. E voltando à descrição da viagem.

Foi no dia 22 de julho de 1815 que a nau deu à vela e principiei a minha viagem para Europa e logo, nesse mesmo dia, já fora da Barra tivemos um vento tão forte, que quebrou o mastaréu de proa, porém de maneira remediável. Continuámos viagem sem mais novidade e só com a zanga de termos sempre ventos contrários até entrarmos na Bahia em cujo porto fundeámos no dia 11 de agosto do mesmo ano, seriam 10 horas da manhã.

Naquele mesmo dia de tarde saltei em terra, e aí me demorei 16 dias, que tanto se demorou a Nau em cumprir a comissão que a fez tocar aquele Porto. Gostei muito da Bahia. Ela oferece uma vista pinturesca e muito agradável aos navegantes que tocam ou entram na sua barra, não só pelo muito e variado arvoredo que borda a Costa de um e outro lado, mas também porque a melhor e mais nobre parte da cidade se deixa ver no cume de uma Montanha, que ela coroa. Tem um comércio muito ativo, e os seus habitantes são muito afáveis para os estrangeiros. Ali tomei logo conhecimento e amizade em várias casas de família aonde entrava com familiaridade a qualquer hora. Todos os dias era convidado para jantares, para brilhantes sociedades e partidas à noite aonde concorriam muitas senhoras, para ir ao teatro aonde achava sempre francos os camarotes que ocupavam as famílias da minha amizade. Enfim, ali passei um tempo muito divertido, e recebi grandes obséquios, com especialidade das famílias do desembargador Leite, do desembargador Side, Franco, do Juiz do Crime, e do Juiz de Fora António Jordão, que tendo sido meu condiscípulo, fui dar ali com ele despachado e casado com uma senhora muito galante e amável. Sempre a Bahia me será mais lembrada, do que o Rio de Janeiro, talvez por que aqui vivia fatigado com o manejo dos meus negócios, e ali estava senhor de mim , e sem maiores cuidados.

No dia 25 de agosto dito, tornei a passar a bordo da nau Medusa, que logo suspendeu ferro e deu à vela seriam 7 horas da manhã seguindo o rumo de Pernambuco, cujo porto devia também tocar segundo as ordens que tinha recebido. Nos dias 3, 4 e 5 de setembro, fomos acossados de uma tempestade com vento fortíssimo e quase contrário, de forma que a nau jogou terrivelmente e parecia submergir-se debaixo das ondas. A sua mastreação em geral sofreu bastante, pois esteve a pontos de desarvorar toda, e ainda chegou a cair o mastaréu de gávea. No dia 6, pelas nove horas da manhã, nos apresentámos defronte da barra de Pernambuco: porém que acontece quando esperávamos dar fundo e repousar da tormenta passada, espalhou-se a voz de que a nau tinha sofrido ruína, e que se achava com água aberta. Que terror se não espalhou por toda a tripulação! O comandante e mais oficiais passaram logo a fazer o devido exame, e acharam que fazia 9 polegadas de água por hora sem se poder descobrir por onde; e foram observando, que a água ia aumentando consideravelmente. Duas vezes arrostámos com a barra de Pernambuco, mas não podemos vencê-la , não só por que o mar naquele sitio é de ordinário muito valente e levantado, e a Nau não estava em tr.°* de se poder fazer força de vela; mas também por que o vento não era muito favorável: em tais circunstâncias, redobrou o susto, e mais ainda pelo conhecimento que havia de ser uma Nau já muito velha, e de muito mau crédito: o susto chegou a tal excesso, que até bons oficiais de Marinha que aí se achavam, desconfiaram, e tremerão, que a Nau largasse o fundo quando se forcejasse com ela.

Neste aperto, o comandante chamou todos os oficiais a conselho, e lhes determinou que dessem por escrito o seu voto a cerca do que se devia fazer: todos concordaram, que devíamos com a cautela possível tornar a voltar a Bahia, por ser naquelas alturas o porto que havia mais franco, e capaz de proporcionar alguma compostura: esta resolução principiou a executar-se no dia 7 de Setembro dito: as Bombas trabalhavam de dia e noite, e nunca chegavam a esgotar a agua que a nau fazia: a tripulação trabalhava sem repouso, e o terror e inquietação continuava a aparecer escrito no rosto de todos: mas a Providência pronta sempre a socorrer os aflitos, quis que tivéssemos dias de bonança, e vento constantemente favorável até a nossa arribada ao Porto da Bahia, que aconteceu em 13 de setembro dito de 1815.

Logo que chegamos, se chamou a Mestrança ou fabricantes do Arsenal Real para assentarem na compostura que se devia fazer a Nau, e decidiram que não tinha nenhuma, e até a condenaram a não dever sair mais ao mar por incapaz: desta forma ficou a nau sem poder continuar viagem para Lisboa e eu com o meu tempo de viagem, e 100$rs. que tinha dado perdidos.

Fundava então a monção ou estação aprovada de navegar para a Europa, por estarmos a tocar o Inverno em que as costas de Portugal são muito perigosas e temíveis; e todo o mundo me aconselhava a esperar ali a monção própria, que costumam contar desde março até fins de setembro porém não só porque pela Secretaria de Estado me tinham sido confiados os decretos de Juiz de Fora da Guarda, e da propriedade do Ofício dos órfãos de Seia para os entregar eu mesmo no Desembargo do Paço de Lisboa, e devia fazer o meu possível para os apresentar em tempo; como também , porque o desamparo em que considerava a mãe e irmãs depois da morte de meu irmão, era um verdugo cruel que me atormentava mesmo no meio dos // prazeres; não pude acomodar-me ao conselho que me davam, e quis antes expor-me ao risco de navegar em tempo impróprio: e porque a galera chamada Condessa da Ponte era a única embarcação, que se dispunha a partir para Lisboa; fui ter com o seu capitão, Joaquim Albino Perfeito, e nos ajustamos em 150000 reis que lhe passei.

Demorou-se ainda a Galera surta no Porto até 29 de setembro desse mesmo ano de 1815; e nesse meio tempo, continuei a frequentar as casas das famílias com quem tinha contraído amizade a primeira vez que ali tinha estado, e adquiri novos conhecimentos, como foi com o honrado negociante Luiz Francisco Guarda, e com o vigário da Igreja de Nossa Senhora dos Pardos; sujeitos de muita probidade e a quem sou muito obrigado.

No dia 29 de setembro dito, demos à vela seriam duas horas da tarde: tivemos uma saída favorável, porem pouco depois, se nos apresentou o vento contrário, que durou muitos dias, sendo obrigados a navegar para o largo mar mais de 150 léguas fora do nosso rumo; de forma, que só no dia 15 de outubro desse mesmo ano, é que nos foi possível e com bastante risco, montar o célebre Cabo de Santo Agostinho, que é de todos quantos há na costa do Brasil, o mais saliente ou metido ao mar, sendo por isso muito respeitado e temido pelos navegantes pelas muitas embarcações que ali têm dado à costa, por fazer ali a terra uma espécie de saco, e puxarem as águas com muita valentia para aquele sítio; sendo essa a razão, por que todos os navegantes fogem dele quanto é possível, e só os que têm ventos contrários ou escassos, é que se aproximam dele, como nos aconteceu a nós, que o avistamos em menos de meia légua, porém com a felicidade de ser já dia, e a tempo que o vento principiava a favorecer-nos.

É naquele Cabo de Santo Agostinho, que se acha fundada Pernambuco, e logo na sua volta se encontra a cidade de Olinda no cume de uma montanha donde faz uma vista lindíssima para o mar, principalmente sendo vista como eu a vi, logo de manhã a tempo que o Sol principiava a raiar sobre a montanha que ela coroa: confesso que me melancolizei e tive grande pesar de aí não entrar, na lembrança, de que poderia encontrar-me com meu irmão Fr. Luiz, que lá se achava nos fins de 1814, segundo a noticia que tive em Lisboa quando cheguei da França. Continuámos viagem sempre à vista da costa do Brasil até chegarmos ao outro Cabo chamado de S. Roque; cuja proximidade de terra deu bastante cuidado pela possibilidade que havia de podermos ser lançados sobre ela, quando acontecesse qualquer temporal; porém a escassez do vento não dava lugar a que nos pudéssemos amarar mais: porém não houve novidade, e no dia 18 de outubro dito, montámos, seriam quatro horas da tarde, o mencionado Cabo de S. Roque, que é aonde a costa do Brasil deixa de seguir o rumo do Norte, e toma, assim como o mar , o rumo de Oés-noroeste, que dirige a Paraíba, Ceará, Maranhão, Pará e a várias outras capitanias do Brasil.

Montado que foi aquele Cabo de S. Roque, ficamos navegando no largo Oceano seguindo o rumo de Nor-Nordeste, porém ainda com alguma cautela enquanto não passámos o perigoso baixo de Fernando, que fica paralelo àquele Cabo de S. Roque e que tem feito naufragar um sem número de embarcações, não obstante o achar-se marcado no mapa: em pouca distância deste Baixo, se encontra a ilha chamada também de Fernando, aonde não há mulheres, e tão somente, homens que para ali são mandados em degredo por crimes que cometeram, servindo-lhes de guarda um destacamento de tropa, que para ali deve mandar de três em três meses, o governador do Maranhão.

No dia 21 de outubro dito, seriam 11 horas da noite, passamos a Linha ou Ecconocial com ótimo vento; e notei, que se não tornaram a encontrar baleias, quando até ali eram imensas as que vimos todos os dias mesmo perto da embarcação: têm elas um inimigo capital, que é outro peixe chamado espadarte, que suposto seja muito mais pequeno, luta com elas // terrivelmente a ponto de as matar com uma espécie de serra, que tem na cauda: estas lutas me serviam muitas vezes de passatempo naquele deserto em que me achava.

No dia 22 de outubro dito, morreu o nosso padre capelão de uma febre que o atacou, e foi Iançado ao mar nesse mesmo dia pelas 3 horas da tarde, fazendo-se-lhe as honras funeraticias com aquela decência que admitiram as circunstâncias.

Fomos continuando viagem com vento muito favorável até o paralelo das ilhas de Cabo Verde, que ficam 11 graus ao norte da Linha; porém tanto que ali chegámos, que foi no dia 28 de outubro, parou o vento, e ficamos em rigorosa calmaria até o 1. ° de novembro desse mesmo ano de 1815; cuja inação nos fatigou o espírito, não só por vermos a viagem atrasada; como também por estarmos expostos a terrível e pestilenta atmosfera daquele clima.

No dia 2 de novembro dito, tornámos a ter vento um pouco favorável até o dia 6 desse mesmo mês em que passámos, seriam cinco horas da tarde, o trópico do Norte, chamado propriamente de Câncer: é este trópico que separa a zona tórrida da zona temperada; e porque saíamos daquela, e entravamos nesta, logo notamos mudança: a atmosfera muito mais fresca a pontos de termos bastante frio, quando até aí suávamos de dia e de noite: o vento mais grosso e valente, etc.

No dia 7, seriam com pequena diferença 11 horas da noite sofremos uma trovoada fortíssima : o vento não se podia aguentar; o mar levantava-se de serra em serra, e vinha rebentar sobre o convés da galera, que foi obrigada a caçar os panos, e virar a popa correndo em árvore seca, quase desgovernada; toda a tripulação em desordem, não obstante a atividade e coragem do comandante: e enfim, é em semelhantes ocasiões, que o vento e mar à porfia apresentam horrores de que ninguém pode fazer ideia sem que os presencie; e é então, que o espirito ainda o mais corajoso, perde grande parte do seu valor, maiormente vendo, como nos vimos, meter a galera um dos bordos inteiramente debaixo de água, e rasgar pelo meio uma das principais velas das que ainda se conservavam içadas como necessárias para poder fugir-se ao tempo.

Durou aquela trovoada com toda a sua fúria até as seis horas do dia seguinte; porém o vento continuou sempre com força desmedida até o dia 10 de Novembro dito; e em todo esse tempo, só tivemos para comer biscoito com manteiga, por não ser possível acender lume para cozinhar: foi então, que me lembraram bastante os conselhos que me davam na Bahia, de não embarcar contra a monção própria de navegar para a Europa.

No dia 11 de Novembro dito, seriam 6 horas da manhã, avistámos na nossa popa uma galera desarvorada: içou-nos a bandeira inglesa, e deu sinal de querer falar-nos (já a esse tempo havia bonança) esperamo-la, e quis combinar com o nosso comandante os graus de latitude e longitude em que se achavam, para com melhor certeza poderem continuar a sua derrota, visto que nos dias de tempestade não se tinham podido fazer os devidos cálculos: contou-nos o muito que tinha sofrido naqueles dias de tormenta: pediu por favor um pau para poder remediar um dos mastaréus que levava quebrados: disse que a sua galera se chamava Lusitânia, que vinha de Buenos Aires com 69 dias de viagem; e disse mais, que ali corria de piano a noticia, de que Bonaparte se achava já na ilha de S. Helena.

No dia 12 de novembro dito, tivemos repetidos aguaceiros acompanhados de vento fortíssimo, mas que não causaram prejuízo nenhum à embarcação.

No dia 13 de novembro dito, navegámos com vento de bonança; e no dia 14, chegámos ao paralelo das ilhas Canárias: nesse mesmo dia seriam 3 horas da tarde, encontramos boiando sobre as ondas, uma grande tábua, e perto dela hum pequeno molho, que parecia ser de sargaço; e mais ao longe outra coisa, que de quando em quando lançava uma ponta negra fora de água, sem que pudéssemos examinar o que era: porém tudo dava indícios, de serem despojos de algum navio, que desgraçadamente, naufragou, talvez naqueles dias de tormenta que tivemos desde 7 até 10 desse mês. //

No dia 14 de novembro dito, continuámos com bom vento até às nove horas da noite, em quo se levantou um vento Nord-Este contrário ao nosso rumo, e tão forte, que atirou connosco para o mar de Oeste mais de 250 léguas, de forma, que fomos obrigados depois a tomar o rumo do canal das ilhas dos Açores, em cujo canal navegámos nos dias 19, 20 e parte de 21 de Novembro dito.

É a navegação daquele canal dos Açores bastante aprazível para quem, como nós, passar [sic] à vista, e muito perto das ilhas: entre estas, se encontra a ilha Terceira, cidade de Angra, que faz uma vista majestosa para o mar.

O seu porto é muito franco e defendido por um forte chamado de S. António: a cidade acha-se pela maior parte fundada em uma planície; e ainda parte dela se estende pela encosta de uma Montanha , que aí se acha ao oeste chamada Monte do Brasil que tem no seu cume dois faróis para servirem de guia aos navegantes: tive bastante pesar de não poder entrar nesta cidade só para ver se o interno me lisonjeava tanto como o externo; e mesmo para examinar uma terra, que meu pai habitou cinco anos, e que ele gabava tanto nas cartas que de lá escrevia a minha mãe.

Nos dias 22, 23 e 24 de novembro dito, navegámos com vento frouxo e muito escasso: porém ao amanhecer do dia 25, principiou a atmosfera a carregar-se de elétrica tudo anunciava uma horrenda trovoada: não decidiu durante o dia, por que só à noite seriam 8 horas, é que se verificou a tormenta, e com tal destempero, que a simples lembrança faz terror: o capitão já a esse tempo tinha tudo acautelado, porém nem mesmo assim pôde escapar a grandes estragos: a noite estava escura medonha; o ar se incendiava com amiudados relâmpagos; os trovões faziam um estampido horrendo; e o vento e mar à porfia pareciam querer engolir a nossa galera: Em tão críticas circunstâncias, tomou o capitão o expediente de cassar a maior parte das velas; e de se pregar à capa por ver se assim podia escapar a tão grande tormenta; porém foi em vão, por que a galera à capa não podia suportar o impulso do vento e mar, e foi então que estivemos quase submergidos: por isso o capitão novamente soltou alguns panos, para que a galera andando, não sofresse tão grande impressão: desta forma ficámos correndo pelo mar fora quase sem rumo, e com tal violência, que se rasgou pelo meio a vela grande, caiu um dos joanetes, e foi tal força que fez a galera, que abriu água até fazer 15 polegadas por hora, e com o muito mar que entrou dentro, se arruinou grande parte da carga, que consistia em açúcar e café: durou esta horrenda tempestade até as 9 horas do dia 26, em que principiou a acalmar: foi esta tormenta muito superior à que tínhamos tido desde 7 até 10 desse mesmo mês, e a todas as mais que tínhamos sofrido; e foi então que entrei no verdadeiro conhecimento do que me tinham dito na Bahia, de ser perigosíssima a navegação para a Europa em tempo de inverno.

No dia 27 e 28, navegámos com vento muito favorável; e ao amanhecer do dia 29 esperávamos encontrar terra das vizinhanças de Lisboa: porém não aconteceu assim, por que ao observar do sol nesse dia, se conheceu, que o capitão e piloto tinham errado os cálculos de longitude e latitude que tinham feito, e que nos achávamos ao Norte de Lisboa mais de quatro graus (erro extraordinário, e que lhes ficou bastante indecoroso): em tais circunstâncias, fomos obrigados a desfazer aquele erro navegando novamente para o Sul, o que fizemos no dia 30 de novembro, e 1.º de dezembro; até que no dia 2 deste mês, seriam oito horas da manhã, avistámos o Cabo da Roca, que fica na proximidade da Barra a 5 léguas de Lisboa.

Foi nesta ocasião, que me vi possuído de hum prazer tão forte, que melhor se pode sentir do que explicar: a proximidade em que me via de terra da Europa; a esperança que concebi de desembarcar em Lisboa, talvez em menos de 24 horas; o ver-me já quase salvo das tormentas e horrores do mar; e enfim a possibilidade em que me considerava de poder voltar breve a minha pátria, e abraçar a minha família e amigos; tudo foram motivos justos, que se // me apresentaram para conceber um prazer tão lisonjeiro e extraordinário, que parece me fez de repente esquecer todos os incómodos e males passados.

Não foi, porém, de muita duração aquele prazer, por que nesse mesmo dia achando-nos já quase a dar entrada na Barra, tivemos um vento contrário que nos tornou a lançar para o mar mais de 12 léguas, e aí nos entretivemos a bordejar à espera de vento favorável.

No dia 3 de Dezembro desse mesmo ano de 1815, oh que dia! era para desejar, que todos os que negam a existência de um Deus; que não confiam na sua providência, nem tão pouco no patrocínio da Virgem Nossa Senhora; e que só atribuem os grandes e extraordinários acontecimentos a essa quimera ou fábula a que chamam acaso; se achassem nesse dia comigo na galera Condessa da Ponte, e vissem o que eu vi; porque de certo ficariam convencidos do seu erro: era meia hora depois do meio dia, e a 7 léguas da barra de Lisboa estava o dia limpo, o mar sossegado e quase em calmaria: quando de repente se arma uma trovoada da parte Sul, e caiu sobre nós com tal rapidez, que nem deu lugar a que se fizesse qualquer manobra das que de ordinário costumam fazer-se para se escapar às tempestades: não ficou uma sô vela que não ficasse feita em fitas, à exceção da chamada traquete: os mastos foram quebrados pelo meio: o mar que se levantava de serra em serra, passava repetidas vezes, e em grossas ondas por cima da galera a pontos de ficar toda debaixo de água, tanto assim, que mesmo sobre a coberta éramos afligidos com muito mar que passava de um a outro lado: a galera que já a esse tempo se achava de água aberta por força de outra tempestade, passou então a fazer tanta, que já se não podia esgotar com as bombas, e foi necessário fazer uso de baldes: para mais se aumentar o nosso horror e confusão, ainda tivemos olhos para ver meter a pique outra galera, que se achava muito perto da nossa; da qual se não salvou uma sô pessoa: o homem que governava o nosso leme, parece que enlouqueceu; por que no meio da tormenta desamparou este, e principiou a gritar pela Senhora da Piedade; ficando desta forma a galera sem leme, sem rumo, e entregue a discrição das ondas: a tripulação, que se compunha de 42 marinheiros, vendo-se sem meios de manobrar, por que o vento já tinha derrotado tudo, perdeu o espírito, e lançando-se todos de joelhos sobre o convés da galera, gritaram em altas vozes pelo Senhor dos Passos prometendo-lhe a vela do traquete, quando lhes acudisse: o capitão, chorava, implorava, e prometia com eles: eu e os mais passageiros, fizemos o mesmo, e no meu interior prometi uma missa à Nossa Senhora das Dores: Eu pensava, que as tormentas no mar pouco ou nada podiam exceder as que já tinha sofrido em outros dias; porem enganei-me, eu ainda não tinha visto tudo: para a salvação daquelas observei, que concorreu muito a força e a arte humana; porém nesta nada disso teve lugar, por que só um braço superior podia salvar-nos depois de entregues à fúria dos ventos e do mar, com velas, mastos, e leme perdidos: Eu como cristão, assim o creio; maiormente vendo, não só que no meio das implorações principiou o tempo a serenar; mas também, que a vela do traquete prometida ao Senhor dos Passos foi a única que ficou ilesa, sendo ela uma daquelas em que o vento costuma fazer maior impressão.

Serenada que foi a tormenta, que não durou meia hora, ficamos boiando sobre o mar, e à discrição das ondas: para salvar-mos a vida, e ver se podíamos continuar viagem, foi necessário repartir a gente para diferentes trabalhos: eu, com os mais passageiros, e alguns marinheiros, fomos destinados para o serviço das bombas a sacar água; e os mais marinheiros, foram mandados coser e remendar velas, que já há muitos tempos se achavam sem servir, e arrumadas por incapazes e velhas; e em tudo isto se consumiu o resto daquele tormentoso dia 3, até à uma hora do dia 4, em que se principiou a navegar com algum preceito, em razão daqueles trabalhos.

Como as velas com que se remediou a nossa desgraça eram muito fracas e velhas fizemos por isso uma navegação muito lenta, por temermos que se rasgassem quando se fizesse força de vela: e é por essa razão, que só no dia 6, tocámos a barra de Lisboa a qual não // entrámos por escassear o vento, e só no dia seguinte, 7, é que entrámos, e demos fundo defronte da Torre de Belém, seriam quatro horas da tarde: a nossa entrada foi patética: todo o mundo se consternou de ver o estado da nossa galera, que bem deixava ver os grandes perigos com que lutámos: concorreu muita gente a ver-nos, e a saber os motivos de tão grandes estragos.

No dia 8 de manhã, fomos visitados pela Junta da Saúde, que nos apresentou de quarentena, por nos ter morrido o padre capelão, e mais dois homens: em razão disso, ficamos inibidos de saltar em terra , como também de poder ir nada da terra para bordo, enquanto se não verificasse, que não havia suspeitas de peste: porém a quarentena não durou senão 24 horas, e logo saltámos em terra ao amanhecer do dia 9, ficando justo com o capitão da galera, de no dia 11, irmos todos em procissão com a vela do traquete ao Senhor dos Passos.

Naquele mesmo dia 9 de Dezembro de 1815, em que saltei em terra, me dirigi logo ao Convento dos Paulistas para saber noticias da minha família; e aí recebi a desgraçada nova de ter falecido a minha querida mãe: aqui, largo a pena, por que semelhante facto não deixa lugar, a narração de algum outro de meus conhecimentos qualquer que ele seja, de gosto ou desgosto; pois é certo, que hum filho que perde a melhor das mães, toca o termo de seus prazeres, e o cúmulo de suas infelicidades.

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Imagem: Seia, Portugal (Wikicommons)


quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

Correspondência entre Francisco António de Raposo e Carlos Frederico Lecor (1818-1819)

Carta n.º 1 - De Francisco António Raposo a Carlos Frederico Lecor, com informações acerca de uma visita que o primeiro fez a Maldonado, por terra, no último trimestre de 1818

 [Folhas numeradas. Está entre duas cartas datas, uma de 7/9/1818 e outra de 10/1/1819]

Ilustríssimo e excelentíssimo senhor

As circunstâncias um pouco confusas que observo na povoação de Maldonado me obrigam a participar a vossa excelência o que tenho observado para melhor julgar o que for mais conveniente. Pelo caminho encontrei em todos contentamento, felicitando-se de poderem gozar do descanso que a tanto tempo desejavam, para restabelecerem as suas casas que de ano em ano se tinham cada vez mais arruinado. De Solis Grande até Pan de Azúcar, observei o mesmo contentamento, porém um pouco de altivez mais nos indivíduos, ainda que prestando-se me para tudo, porém queriam só representar de soldados acompanhando-me ao lado, sem quererem acompanhar a bagagem, e outras vezes adiante.

Do Pan de Azúcar para Maldonado me acompanhou um tenente, comandante do distrito, por algum tempo na estrada onde em conversação me disse que se receava muito do comandante do departamento que estava nomeado, não cometesse // as suas atrocidades antigas, e depois de dizer várias coisas concluiu que havia de fazer toda a diligência para não estar debaixo do seu comando. Disse-lhe que não se desanimasse que em vossa excelência chegando, logo se havia arranjar tudo de um modo muito agradável, pois já lhes tinha mostrado com experiência as vantagens que têm tido aqueles que estão unidos à nossa bandeira. Entreteve mais um pouco de tempo a conversação. Falou-me português muito bem e se despediu. Notei que por todos estes sítios quando entrámos há três anos não falavam mais do que espanhol, e agora são muitos os que falam português bastante claro, o que me dá ideia da oposição que tínhamos quando entrámos no país, e presentemente estarem a favor.

O coronel P… é pouco constante no seu parecer, e tem um oficial que é o seu espírito santo. Chama-se Furrezão se não me engano no nome. É todo metido a belo espírito, e político, de forma que o leva por onde quer ao tenente-coronel. Este homem da primeira vista // que tive com ele, se fez conhecer pelo modo com que falava. Julguei, pelas suas expressões, que estão com ideias de novas condições, e tratados, etc. Não quis entrar em questão por não aclarar ideias que não podia repelir.

Na disputa que houve com o coronel Almeida se faz conhecer a volubilidade de um, e a influência do outro. O primeiro esquecendo-se do que tinha convindo disse que tinha sido forçado o seu consentimento, e o segundo chama antipolítico o levantar a bandeira portuguesa na torre, depois do chefe do departamento estar feito coronel por vossa excelência, e tomar o comando com a sua autoridade.

De todos os rumores que tenho ouvido, conheço que o cabildo e o povo quer a nossa união, e que só alguns oficiais é que se querem reputar como nação, e fazerem tratados, etc. Ouvir Agui… [Francisco Aguilar y Leal (1776-1840), ministro interino de Hacienda em Maldonado] fala sempre comigo a nosso favor, e deseja que a Ponta de Leste [Punta del Este] se povoe; que para isto basta só distribuir terreno aos vizinhos que o quiserem para nele edificar, com obrigação de ocuparem logo o terreno construindo casas. Fala com o // coronel Almeida a respeito da disputa da bandeira. Diz-lhe que isso nunca verá a bandeira portuguesa na torre. Há algumas vozes que dizem dever arvorar a bandeira da pátria, e que nós somos seus auxiliadores. À vista disto me recordo que poderá haver nisto alguma influência anglicana.

Em San Carlos ainda está arvorado o barrete da liberdade e ninguém se atreve a derribá-lo. Os povos estão todos contentes, porém começam a duvidar decididamente o partido que tomarão. É entre os magnatas que há estas diferenças.

O comandante de Maldonado tem pedido armas que se lhe tem dado, e querem obrigar o povo a pegar em armas, julgo para apresentar a vossa excelência um maior número de gente. Têm chegado a dar em alguns para os obrigar. Isto tem feito retirar uns para Montevidéu e outros para a ilha. Corre aqui voz que a gente que se uniu em San José [de Mayo], depois de três dias tornaram outra vez a seguir o partido da Espanha ou pátria.

[…] [Não existe final da carta no manuscrito]

[Francisco António Raposo, Coronel do Real Corpo de Engenheiros]

Fonte: AHM-DIV-2-01-01-21 [imagens 27-30]


* * *

 

Carta n.º 2 - De Francisco António Raposo a Carlos Frederico Lecor, com informações acerca de uma visita que o primeiro fez a San Domingos Soriano, Mercedes e Rincón de Gallinas, no final de 1818 e inícios de 1819 (Mercedes, 10 de janeiro de 1819)

Ilustríssimo e excelentíssimo senhor

Tenho a honra de participar a vossa excelência que tendo feito uma viagem muito breve, desembarquei na Colónia e achei as obras adiantadas. Sobre a cortina entre os dois meio baluartes está o parapeito feito com taipa; assim como no baluarte da Bandeira já estão feitos os parapeitos de terrão. As paredes dos quarteis das duas companhias estão levantadas, e as que formam o quartel da companhia da retaguarda estão concluídos para madeirar. Ficam continuando o quartel da companhia de vanguarda para quando voltar àquela praça se madeirar e telhar. Ficou eleito o terreno para a fábrica de telha e tijolo. É um lugar junto às barreiras, onde há uma boa planície, ficando-lhe perto a água do rio. Em vinte e duas horas, que ali me demorei, foi o que se determinou, e observei naquela praça sossego e confiança na povoação, sendo o único motivo de queixa a retirada da música para Montevidéu, por deixar a terra triste.

Sai para S. Domingos Soriano, onde cheguei // no dia seguinte ao meio-dia. Logo desembarquei para ver a praça. Pareceu-me a posição pouco militar e deficiente de defender a não ser sustida por alguma embarcação de guerra, que segure a retirada. Não tem mais do que ser o porto vantajoso para o embarque de fazendas. A povoação fica arredada da praia ou porto de embarque coisa de dois tiros de espingarda, e além de ser de pouco consideração, tem as casas muito espalhadas como em habitação de lavradores. Fiquei uma noite na povoação, e não posso deixar de dizer o grande crédito que o tenente Jacinto Roque de Sena tem naqueles povos, todos os festejavam, e lhes ouvi dizer que com a sua chegada tudo estava remediado, que lhes não havia de faltar coisa alguma. 

Conheci o comandante paraguaio Yesdro [Justo Yegros], que foi das forças navais de Artigas. Pareceu-me muito ativo e de bons sentimentos e inclinações e de um carácter superior ao do capitão Palaços. Também conheci o português Saldanha que fez a revolução, nos seus modos e carácter mostra ser como o dos nossos lavradores portugueses. //

Cheguei à Capilha de Mercedes em dois dias. Na viagem que fizemos, admirei-me da quantidade de madeiras com que estão bordadas as margens das ilhas e do Rincão das Galinhas, e desembarcando em um lugar onde estavam cortando madeiras para lenha, me entranhei pelo bosque para ver as grossuras das árvores e a abundância que haveria; vi que se poderiam tirar vigas de trinta palmos de comprimento, e havia grossuras para se poder fazer bom tabuado, em quanto as qualidades me informei daquele rancho de gente, que me asseguravam e ao coronel Pinto haver muito boas qualidades de madeiras de construção, e até se achariam algumas árvores de madeira de epé ou arco e a largura da mata naquele lugar pela terra dentro seria de meia légua. Asseguram-me também que tanto as margens do lado do rio Negro como aquelas do lado do Uruguai estão bordadas de árvores, assim como as ilhas no Uruguai, que as vi muito frondíferas [sic] de árvores.

Pelo que julgo será de uma grande vantagem para // a Real Fazenda estabelecer um partido de gente, que se empregue em cortar madeiras para construção, aproveitando os troncos e ramadas em lenha para fornecimento das praças e para o comércio, persuadido de que só o corte das lenhas pagaria todas as despesas; visto que as embarcações de Buenos Aires e demais partes fazem grandes despesas nos cortes de madeiras para lenha, e estimariam achar a carga pronta para abreviarem a sua viagem. Vossa excelência muito melhor poderá julgar a grande vantagem que se poderia tirar de uma tão grande abundância de madeiras que bordam todas as margens.

Desembarquei no dia 5 ao meio-dia na Capilha de Mercedes e me apresentei ao excelentíssimo Brigadeiro Saldanha e Daun, a quem comuniquei as ordens que tive a honra de receber de vossa excelência. Vi a povoação da Capilha de Mercedes; é muito mais considerável do que S. Domingos, e a sua posição mais defensável. A povoação está toda barricada e em estado de poder resistir a qualquer ataque do inimigo. Estavam // aperfeiçoando os parapeitos ou cortaduras, e em tudo estavam apercebidos. Escolheu-se duas casas que se ligavam com um parapeito pelo lado exterior da povoação para servirem de forte para a guarnição que fica no povo, e em um lugar que entra a povoação guarnecem-se-lhe as seteias de parapeitos de tijolos guarnecidos de seteiras a fim de abrirem os fogos e esconderem o número de gente que os guarnece. Para afastar o inimigo devem chegar as paredes onde se abrigarão do fogo, se guarnece de paliçadas a uma distância que fique debaixo da direção dos tiros das seteias, para serem de cima defendidas com o fogo de mosquete. Têm estas casas capacidade em que possam ter víveres para se sustentarem enquanto não forem socorridas.

No dia seguinte, fui com o senhor Brigadeiro Saldanha visitar o general Curado, e o marechal Oliveira. Receberam-nos com cordialidade, obsequiando em tudo quanto a atenção permite. A sua corporação de oficiais se mostraram [sic] muito obsequiosos. O general Curado falou na cortadura que // já tinha principiado de que já tinham feito 160 braças de comprimento. Mostrou-nos um estrepe de madeira que mandou fazer para resistir ou estropiar a cavalaria. É uma armadilha de três paus cruzados, que fará a altura de dois palmos, e de todo o modo que fique se apoia em três pontas e apresenta outras três para cima. Como não tinha visto o terreno não podia dizer coisa alguma sobre a sua utilidade.

No dia depois, fomos ver o estreito do Rincão e a obra principiada. Tinham-na dado de empreitada pagando a 160 reis a braça, com as dimensões que vossa excelência tinha indicado; porém, o terreno é duro e, depois de uma camada de terra preta de três a quatro palmos de grosso, se encontra uma camada de tufo muito duro para ser levado a enxada, e só a picareta é que pode ser cavado. Este tufo é marnoso [margoso] e bastante duro. Esta dificuldade faz lembrar fazer somente escavações nos lugares onde se deve fazer fogo para flanquear o entrincheiramento, e fazer as continuações das linhas de abates com excelentes árvores de que // há abundância tantos nas margens da vanguarda como na retaguarda da linha. As duas alturas em que tanto falavam são muito pouco sensíveis pela sinuosidade do terreno; uma delas domina a outra ainda que distante. Porém oferecem vantagem para colocar artilharia, para defender a entrada, que deve ficar entre as duas alturas, e proteger os ramais que ligam com as margens do Uruguai e rio Negro.

Segundo o que me disseram, não terá uma légua de extensão; porém, não dou crédito a isto sem medir, o que farei logo que passemos ao outro lado. Julgo será muito mais fácil a obra por haver grande recursos de madeiras, o que muito cobiço ter em Montevidéu e na Colónia.

Continua-se a entrincheirar as duas casas na Capilha, e o coronel Fontes a debulhar o trigo que se apanhou ou colheu nas terras abandonadas, para depois se fazer a mudança de campo para o Rincão, para se continuar a obra do entrincheiramento, que // arbitrariamente o general Curado despendeu julgando [que] levaria outra direção. O campo novo do general Curado está para dentro do estreito do Rincão coisa de meia légua, chegado à margem do rio Negro em uma altura que domina para um e outro lado.

Meu general, sinto ter que dizer da deserção dos soldados que, sem motivo de falta sensível, se têm deixado seduzir por uma carta ou proclamação de Artigas, que aqui deixou, no fez espalhar oferecendo passagem livre para qualquer parte que queiram ir, sem que os obrigue a pegar em armas. Esta ideia tem induzido soldados de bom procedimento que, levados pode ser pelo desejo de ver a sua pátria, os tenha induzido à deserção, persuadidos que por este meio poderão mais facilmente buscar passagem para o reino, ou ficarem livres do serviço. Consta-me serem 13 do batalhão, e dois de artilharia. Esta ideia é muito lisonjeira para os soldados e temo que o expediente não produza maior efeito, pois a esperança de // por este meio poderem ver mais depressa as suas famílias pode agradar muito aos soldados, que julgo por agora não ter motivo de queixa mais que a demora de algum pagamento, pois são muito bem fornecidos de rações, e abundantemente. O senhor brigadeiro Saldanha procura remediar isto quanto pode com as mais eficazes como julgo participará a vossa excelência.

Sendo quanto se me oferece dizer, rogo a vossa excelência me queira desculpar a longa narração com que tomo o precioso tempo a vossa excelência por julgar dever informar sobre todos os objetos que julgo devem interessar, pedindo dito perdão e a continuação das ordens de vossa excelência.

Deus guarde a vossa excelência. Quartel na Capilha de Mercedes. 10 de janeiro de 1819.

Ilustríssimo e excelentíssimo senhor Barão da Laguna

Francisco António Raposo

Coronel comandante do Real Corpo de Engenheiros

Fonte: AHM-DIV-2-01-01-21 [imagens 31-39]


Imagem: Capilla de Santo Domingo de Soriano vista desde la Plaza (Wikicommons)

domingo, 21 de abril de 2024

Transcripto: José de Abreu e a Independência do Paraguai (9 a 23 de maio de 1811)

«Regressa do Paraguai o tenente José Abreu dando noticias circunstanciadas dos sucessos políticos daquela provinda espanhola; receção que teve o dito tenente na residência do Governador Velasco ; este se manifesta inteiramente submisso aos desígnios da Princesa D. Carlota, pois que não reconhece outro sucessor á coroa e domínios da Espanha ; regozijo popular em sinal da aliança dos portugueses com os paraguaios; levante de quartel, prisão e espancamento do major Cabrera ; intimação ao governador e sequestro do tenente Abreu; acentua-se a revolução ; assédio da casa do governador; deposição de Velasco; D. Fulgencio Yegros assume o Governo ; o tenente Abreu despede-se de D. Bernardo Velasco e este reafirma sua fé politica em D. Carlota, a quem reconhece como única sucessora de D. Fernando VII, e pede ao tenente Abreu que interceda junto a D. Diogo de Souza para que venha em seu socorro, na dolorosa situação em que se acha; o novo governador Yegros afirma contar com recursos vindos de Buenos Ayres.

[Carta de Francisco das Chagas Santos, governador das Missões Orientais ao capitão-general do Rio Grande do Sul, D. Diogo de Sousa, recontando o testemunho do tenente José de Abreu dos eventos em Assunção em torno do 14 de maio de 1811; ortografia modernizada]

Ilmo. e Exmo. Senhor. 

Com o regresso do tenente de Dragões José de Abreu, que aqui chegou ontem do Paraguai, se verificam as notícias, que participei a V. Ex.ª no meu ofício de 30 do mês passado, a respeito daquela província, donde não sem trabalho e receio se livrou o mesmo tenente; o qual me fez a seguinte narração de tudo quanto aconteceu, e ele observou pessoalmente. Achando-se detido no povo de Itapúa [no original, Ytapua; atual Encarnación] 15 dias o mesmo tenente Abreu pelo tenente-coronel e tenente governador D. Fulgencio Yegros [Fulgencio Yegros y Franco de Torres, 1780-1821], recebeu esta carta do governador D. Bernardo Velasco [Bernardo Luis de Velasco y Huidobro, 1742-1823], assim como o sobredito tenente para que continuasse a sua marcha à cidade de Assunção, onde em consequência chegou a 9 do mês de maio depois de nove dias de viagem desde o citado povo. 9 léguas distante daquela cidade foi recebido o tenente Abreu por um ajudante de ordens de Velasco, com um sargento e quatro soldados, e na casa onde parou ao meio-dia, e pernoitou lhe deram um grande jantar. 

Ao seguinte dia vieram cumprimentar ao mesmo tenente um clérigo, e dois oficiais sendo um destes mandado da parte do tenente-coronel D. João Manuel Gamarra [Juan Manuel Gamarra y Mendoza], mui acreditado, e estimado dos paraguaios, pelos quais é denominado o general Gamarra; pois confeção que a ele devem a defesa do seu país; em caminho chegaram mais três oficiais de artilharia, e no sítio da Recoleta onde principia a cidade começou ajuntar-se tanta gente no espaço de uma légua de marcha, que quando chegou o tenente Abreu à residência do governador Velasco se viu acompanhado por mais de 3000 pessoas de ambos os sexos: Velasco saiu à porta da rua onde se achava a sua guarda, e o recebeu com a maior alegria; e depois de conversar mais de duas horas, referindo os diversos ataques em que bateu, e venceu aos de Buenos Aires, asseverou que todo o seu empenho era pôr-se aos pés da sereníssima senhora Dona Carlota; pois que não reconhecia outro sucessor à coroa, e domínios de Espanha. O mesmo governador acompanhou ao tenente Abreu a um decente quarto destinado para o seu alojamento na mesma residência onde cearam. 

No dia 10 disse Velasco ao tenente Abreu que seria muito conveniente que V. Exa. mandasse um destacamento de 200 homens de cavalaria para o outro lado do Uruguai, a fim de se conservarem entre o mesmo Uruguai, e o Paraná nos sítios de Curuzú Cuatiá [Curuçu-quatiá], e Corrientes para evitar a comunicação de Belgrano com as Missões, e Paraguai. 

No dia 11 mandou Velasco convocar o cabildo, e o bispo, e se ajuntaram todos às 4 horas da tarde na sala da residência, onde estiveram mui satisfeitos até ás 11 horas da noite, e assentaram em responder a V. Exa. que ao sobredito destacamento de 200 homens daria V. Exa. as ordens que lhe parecesse, e que ao mencionado tenente-Coronel D. Fulgencio Yegros se determinava: que obedecesse, e seguisse as ordens de V. Exa., a quem se remetia a nomeação de governador de Missões do lado ocidental do Uruguai, para V. Exa. a confirmar na pessoa do mesmo tenente-coronel.

Nos seguintes dias 12, 13, e 14 enquanto o governador, Cabildo, e bispo escreviam a V. Exa. se ocupou o tenente Abreu em corresponder, e pagar infinitas visitas, que as principais pessoas lhe fizeram, tendo-o antes obsequiado com muitos presentes de doces, e um grande baile; a imitação do qual houveram [sic] outros, em sinal da aliança dos portugueses com os paraguaios. Havendo recebido as cartas sobreditas o tenente Abreu, e achando-se já pronto a partir na manhã do dia 15, sucedeu, que na noite do dia 14 pelas 8 horas saindo ele à rua, encontrou o tenente-coronel Gamarra com uma Clavina, e um par de Pistolas no cinto, acompanhado de um soldado armado da mesma forma, e um criado com um lampião: perguntou o mesmo tenente, que novidade havia, e respondeu Gamarra que ia a ver o governador; pois gritavam pelas ruas alvoroto en la Plasa. Voltou o tenente Abreu com o mesmo Gamarra à residência do Governador, a quem perguntando Gamarra, que novidade. havia, disse o governador: que ouvia dizer haver alvoroto; mas que não sabia o que hera. Pouco depois entrou um dos cabildantes dizendo: que a tropa (não excediam de 100 homens entre Granadeiros, e Artilheiros que faziam a guarda do governador) se havia fechado no quartel, e não abria a porta a ninguém, e trabalhavam dentro em montar peças de artilharia, e carregar espingardas. Disse então o governador a Gamarra: que fosse ver o que havia no quartel; a cuja porta batendo Gamarra perguntaram quem era: respondeu: que era Gamarra: disseram-lhe então de dentro: ─ perdone mi General, que no se abre agora la puerta: replicou Gamarra dizendo se o não conheciam e responderam, que sim, e se ele também era dos que pretendiam desarmar aos paraguaios: disse Gamarra que bem o conheciam, e que ele também era paraguaio; e não conseguindo se lhe abrisse a porta, voltou a dar parte ao governador. 

Passado algum tempo mandou o mesmo Gamarra ao quartel um tenente paraguaio bem conhecido; o qual antes de chegar à porta lhe deram 1 tiro de clavina de uma das janelas, e voltou com esta notícia ao governador ; que perturbado, e aflito perguntou ao tenente Abreu o que lhe parecia semelhante desordem; ao que respondeu: que seria bom mandar cercar o quartel, não permitindo, que lhe entrasse, nem saísse, pessoa alguma até de manhã; em cujo tempo se insistissem em não abrir a porta, entregando-se os de dentro, se atacasse fogo ao mesmo quartel.

A este tempo chegou o major da praça Cabrera [no original, Cabrer] acompanhado de 8 soldados. com que andava de ronda, e se ofereceu para ir ao quartel; cuja porta não se lhe abrindo, disseram os soldados, que abrissem, pois eram paraguaios; então abriram a porta, e os mesmos soldados empurrando para dentro o major, e dando-lhe pranchadas, entraram todos e fecharam a porta, amarraram o major, e assim o conservaram toda a noite. 

Mandou o governador o religioso Canhete mui respeitado e conhecido por suas virtudes, que fosse ao quartel afim de apaziguar aquela desordem; mas nada conseguiu o do religioso, tendo ido 3 vezes, até que da ultima lhe disseram: que se retirasse ao seu convento; pois não precisavam de mais práticas. Às 11 horas da noite chegou do quartel o alferes Iturbe [no original, Yturve; Vicente Ignacio Iturbe, 1786-1837] com 1 papel assinado por ele o capitão Caballero [no original, Cavalheiro; Pedro Juan Caballero, 1786-1821] autor desta revolução. e outro alferes irmão do 1°, no qual papel diziam ao Governador: que na manhã do seguinte dia 15 se lhes havia entregar as chaves do cabildo, dos cofres reais, da secretaria, e do estanque do tabaco; devendo logo separar-se da companhia do Governador o seu assessor e sobrinho D. Benedito, o ajudante de ordens D. José Theodoro, e o fiscal D. José Isalde; e que o tenente português Abreu não sairia da cidade, nem montaria a cavalo até segunda ordem. A isto respondeu o governador por escrito e ficou esperando o alferes Iturbe na guarda da porta, onde disse assaz enfadado: que não se precisava incomodar a Portugal; pois não careciam socorros: que os europeus haviam ficado na cidade, sem ajudarem com o seu dinheiro os pagamentos das tropas milicianas empregadas em defender a fronteira, e disseram que não tinham dinheiro, sendo certo, que no dia do ataque do Paraguarí [batalha a 19 de janeiro de 1811, vencida pelas forças do Paraguai contra um exército de Buenos Aires] correndo a noticia por um traidor, que os de Buenos Aires tinham vencido, embarcaram logo, os mesmo europeus 350$000 pesos fortes, a fim de os salvarem para Montevidéu: que os paraguaios depois de repelir, e afugentarem da sua fronteira aos de Buenos Aires, se deram os postos somente aos europeus, e ainda mesmo aos que ficaram na cidade, não sendo contemplados os paraguaios, tratando-os com desprezo, e pior que de antes, por último que intentavam desarmá-los, afim de ficarem só armados os europeus. Respondeu o ajudante de ordens D. José Teodoro, que é paraguaio, dizendo: que antes se tratava de armar maior número de paraguaios, que quanto ao dinheiro, bem se sabia que ele ajudante de ordens estava avisado para ir a Matogrosso a receber o dinheiro que o capitão-general de Cuiabá [no original, Cuyaba] tinha oferecido. A isto disse o alferes Iturbe que ele ajudante de ordens teria bom interesse naquela comissão; pois que além do soldo lhe davam bastante dinheiro para os gastos da viagem, assim como deram 600 pesos a D. Carlos que conduziu os prisioneiros a Montevidéu, e que a ele alferes, e aos demais não se davam semelhantes comissões; pois só serviam para trabalhar, e arriscar suas vidas, sem nada lhes pagarem, e tratando-os com desprezo: que não achavam para governar, e a quem dar tudo, se não aos europeus  e por último: que havia dizer a verdade, ainda que o matassem. Despedido este alferes com a resposta do governador para o quartel, disse o mesmo Velasco ao tenente Abreu: que logo queimasse os ofícios, e respostas dele governador, do bispo, e do cabildo para V. Exa.; o que imediatamente praticou o mesmo tenente. 

Cercado o quartel pelos europeus armados, fugiram, e desapareceram logo que sobre ele deram vários tiros de espingarda do mesmo quartel; do qual saindo os paraguaios em número de 80 ao romper do seguinte dia 15 puxaram para a praça seis peças de artilharia, das quais assestaram duas em frente da residência do governador, e as mais nas bocas das ruas, e ajuntando-se-lhes a este tempo grande número de paraguaios, mandaram do quartel pelo alferes Iturbe duas cartas ao governador, para que cumprisse as condições que na noite precedente se haviam requerido, e do contrário arrasariam a sua residência, e a mesma cidade: chegou a este tempo o bispo com vários eclesiásticos ao quartel, onde lhes disseram que nada era com ele e se recolhesse à sua casa: e o governador respondeu: que ajuntava o cabildo, afim de se proceder à entrega pretendida; a qual havendo-se demorado até as 8 horas da manhã, instaram os oficiais do quartel dizendo que se continuasse a demora mandavam dar fogo às peças: imediatamente mandou o governador entregar-lhes tudo quanto quiseram; depois do que içaram uma bandeira na praça, com salva de 21 tiros de artilharia, gritando todos Viva a união: uma hora depois botaram um bando feito no quartel, e mandado assignar pelo governador, para que todos os que tivessem em suas casas armas, e munições de Guerra, entregassem em duas horas no quartel, onde tudo se pagaria pelo seu justo valor; pena de não o fazendo assim serem castigados com todo o rigor. 

Em consequência recolheu-se todo o armamento, que havia na cidade que pouco mais ou menos seriam 150 clavinas. Seguiu-se logo outro bando feito no quartel, e assinado pelo mesmo Velasco ordenando-se: que das 8 horas da noite por diante ninguém saísse de suas casas sem urgentíssima necessidade; em cujo caso levariam um lampião: e que as patrulhas, que giravam pelas ruas, prenderiam a todas as pessoas, que se achassem conversando, sendo mais de duas. Ao pôr o sol arrearam a bandeira, e deram 9 tiros de peça. No dia 16 se recolheu a artilharia ao pátio do quartel, ficando as bocas das ruas com guardas de 8 homens; e sendo apresentados vario requerimentos aos três oficiais do quartel, responderam: que nada podiam deliberar sem que chegassem os dois deputados, que eram os Doutores Francia [no original, França; José Gaspar García y Rodríguez de Francia Velasco y Yegros (1766-1840)], e Zebalhos [no original, Cebalhos; Juan Valeriano de Zeballos] (ambos paraguaios) e os oficiais da Plana-maior, que haviam mandado chamar: os quais eram o Coronel Gracio o tenente-coronel Cavañez, e o tenente-coronel D. Fulgencio Yegros, a quem haviam nomear por seu governador. 

O tenente Abreu dirigindo-se logo na manhã deste dia ao quartel afim de saber o motivo da sua demora, ou impedimento, lhe respondeu o capitão Caballero: que pedisse tudo quanto precisasse; mas que não hera conveniente, que saísse fora da cidade, antes da chegada dos ditos oficiais da Plana-maior: e nesta ocasião lhe disse aquele capitão: que tendo quatro irmãos oficiais empregados no Real Serviço, e indo sua mãe viúva pedir ao governador Velasco hum dos ditos filhos para sua companhia, não lhe concedera: e que expondo ele capitão ao mesmo Velasco, que seu pai tendo feito a grande picada, e ponte de Taquary, pela qual atacaram, e venceram aos de Buenos Aires, morrera repentinamente naquele trabalho, ficando empenhado, e que por isso pedia se lhe permitisse embarcar uma porção de tabaco, e erva-mate para Montevidéu, pagando os fretes competentes; não se lhe concedeu esta pretensão, e só embarcaram os europeus os seus efeitos; ficando excluídos deste recurso os paraguaios, e que por estas e outras rezões os de Buenos Ayres procuravam a sua liberdade. 

No dia 17 chamaram ao quartel o tenente-coronel Gamarra, e lho propuseram: que entrasse na sua junta; pois muito precisavam dele: respondeu Gamarra: que estava pronto, com a condição porem, de não ser nunca contra o seu soberano, nem contra a religião, nem sujeitar-se à Junta de Buenos Ayres; pois não queria botar um borrão na glória, que havia adquirido nos memoráveis ataques do Paraguai [erro de transcrição; refere-se, provavelmente, à batalha de Paraguarí, referida anteriormente], e Tacuarí [batalha a 9 de março de 1811, que resultou na derrota e retirada do exército portenho liderado por Manuel Belgrano], contra os de Buenos Aires; não agradando esta resposta, mandaram que se retirasse Gamarra. Pela uma hora da noite deste dia se prenderão todos os comandantes, e marinheiros europeus dos barcos armados em Guerra, que se achavam no Paraná junto a Corrientes, Nhembocú [?], e Candelaria. 

No dia 18 mandaram prender o tenente-coronel Gamarra, e ao capitão ajudante de ordens D. José Teodoro, ambos incomunicáveis, e se dizia pelas ruas que haviam enforcar ao tenente português Abreu, e aos dois portugueses que o acompanhavam, a fim de não trazerem noticias. 

No dia 19 também se dizia, e avisaram ao tenente Abreu, que o queriam remeter, e aos seus companheiros presos em grilhões para Buenos Ayres: e no quartel se ordenou: que os oficiais europeus assim de tropa de linha, como milicianos tirassem as divisas de oficiais. 

No dia 20 foi segunda vez o tenente Abreu ao quartel, onde se achavam os sobreditos deputados, e muitos oficiais, que haviam chegado de diversos distritos; e propôs: que ou o mandassem matar como diziam, ou o remetessem preso a Buenos, ou o deixassem // regressar ao seu destino, afim de dar conta da sua comissão a V. Exa., ou lhe permitissem dar parte do motivo da sua demora; e que quanto antes decidissem da sua sorte: respondeu o referido capitão Caballero; que não se afligisse; pois no seguinte dia sem falta entrava na cidade o novo governador D. Fulgencio Yegros, que já se achava na Recoleta 1 légua distante. 

No dia 21 partiu muita Tropa, e gente, de todas as classes para a Recoleta, a fim, de receber o novo governador Yegros; o qual pelas quatro horas da tarde entrou com grande acompanhamento na cidade, que salvou com onze tiros de peça, e o conduziram ao quartel onde depois de se apear foram logo os dois deputados mencionados, o capitão Caballero, e os dois alferes da revolução visitar ao tenente Abreu, com o qual se desculparam de o não ter antes cumprimentado por satisfação ao povo, que dizia ter ele ido a comprar o Paraguai. Concluída a dita visita, foi logo o tenente Abreu ao quartel a cumprimentar o novo governador Yegros, que o recebeu com muitos abraços, por ser seu conhecido, e lhe prometeu: que no dia 23 se retiraria livremente com a resposta a V. Exa. 

No dia 22 houve no quartel missa cantada, e Te Deum laudamos pela feliz chegada do dito governador Yegros. 

No dia 23 indo o tenente Abreu ao quartel para lhe entregarem a resposta, disseram: que a fosse receber do governador Velasco; o qual entre os dois deputados Francia, e Zeballos entregou a carta, ou resposta; e os mesmos deputados pediram ao tenente Abreu os pusesse aos pés de V. Exa., dizendo: que nenhuma novidade lhe causasse aqueles acontecimentos; pois que só eram tendentes a regular melhor o seu governo. 

Passou o tenente Abreu a despedir-se do governador Yegros, a quem devia o seu regresso, e dos oficiais do quartel, aonde pediu licença para se despedir dos dois presos o tenente-coronel Gamarra, e o ajudante de ordens D. José Teodoro, o que lhe concederam indo acompanhado de um oficial, para o qual olhando o tenente-coronel Gamarra disse; que não lhe parecesse que ele receava, ou tinha medo da morte; pois que muitas vezes tinha arriscado a sua vida, e virando-se para o tenente Abreu lhe pediu o pusesse na presença de V. Exa., e que primeiro teria a notícia de o haverem assassinado, que deixar de ser fiel ao seu rei, e sucessores ; pois que jamais obedeceria à Junta de Buenos Ayres. O ajudante de ordens despedindo-se também pediu que o recomendasse a V. Exa., certificando-lhe, que ele se achava preso sem outro delito, que o de ser ajudante de ordens de Velasco; por ordem do qual estava pronto a vir à presença de V. Exa, a não haver acontecido aquela revolução. Ultimamente foi o tenente Abreu despedir-se do governador Velasco; o qual chorando deu-lhe muitos abraços, e com as expressões mais enternecidas pediu; que o pusesse aos pés de V. Exa., rogando, que lhe valesse, e atendesse a sua vida; pois que as suas intenções somente consistiam em pôr-se aos pés da senhora D. Carlota, como legítima sucessora do senhor D. Fernando VII: que V. Exa. pusesse os olhos sobre aquela província, ainda que ele Velasco não existisse; e que os papéis que conduzia o tenente Abreu bem sabia este que ele fora obrigado a assinar, assim como outros muitos, e que ele tenente seria algum dia uma das testemunhas, que as suas assinaturas desde aquela revolução foram sempre forçadas. 

Principiando a sua retirada o tenente Abreu, despediu-se de outras muitas pessoas; as quais lhe rogaram, e principalmente os europeus; que os recomendasse à proteção de V. Exa., em quem tinham toda a confiança, e lhes valesse, para o que contasse V. Ex.ª com todos os seus cabedais, e q não escreviam com o reto de serem apanhadas as suas cartas pelas guardas que se haviam posto nos caminhos; as quais encontrou com efeito o mesmo tenente, que contou sete ate o Paraná não sendo nenhuma delas de menos de 30 homens. 

Diz o tenente Abreu, que quando passou por Itapúa, onde se achava o tenente-coronel Yegros, nomeado hoje governador, lhe mostrava este um papel, ou Gazeta de Buenos Ayres, sobre a antipatia entre os europeus, e americanos, e que no dia em que chegou a Assunção, o mesmo governador Yegros a quem ele tenente fora logo visitar, lhe preguntara se estava certo naquele papel, e respondendo: que sim, disse então Yegros; pois agora lhe mostrarei outro melhor, e tirando-o da algibeira leu, e dizia «Eia honrados paraguaios, sustentai o que tendes feito, que não faltaremos com todos os socorros de dinheiro, armas, pólvora, bala; agora florescerão os americanos livres da opressão dos europeus...» 

Refere o mesmo tenente Abreu que ao terceiro dia depois da revolução do Paraguai, achando-se o alferes Iturbe em casa de uma mulher, e perguntando esta com que intenção havia feito semelhante atentado, não tendo pólvora, nem armas com que se defenderem dos portugueses se lá fossem, respondera o mesmo alferes, a quem fizeram major da praça: que nada lhes faltaria; pois brevemente esperavam todos os socorros de dinheiro, pólvora, e bala, de Buenos Ayres como terra. 

Concluo certificando a V. Exa. de haver eu recebido o seu ofício de 10 do corrente mês, em resposta ao meu de 30 do mês passado. Deus guarde. a V. Exa. muitos anos, como desejo. 

Povo de S. Borja 7 de junho de 1811. Ilmo. e Exmo. Sor. D. Diogo de Souza. De V. Exa. o mais obediente súbdito. Francisco das Chagas Santos»


Fonte

Revista do Arquivo Público do Rio Grande do Sul, n.º 4, outubro de 1921, Porto Alegre, Oficinas Gráficas de A Federação. pp. 67-81