Carta n.º 1 - De Francisco António Raposo a Carlos Frederico Lecor, com informações acerca de uma visita que o primeiro fez a Maldonado, por terra, no último trimestre de 1818
[Folhas numeradas. Está entre duas cartas datas, uma de 7/9/1818 e outra de 10/1/1819]
Ilustríssimo e excelentíssimo senhor
As circunstâncias um pouco confusas que observo na povoação de Maldonado me obrigam a participar a vossa excelência o que tenho observado para melhor julgar o que for mais conveniente. Pelo caminho encontrei em todos contentamento, felicitando-se de poderem gozar do descanso que a tanto tempo desejavam, para restabelecerem as suas casas que de ano em ano se tinham cada vez mais arruinado. De Solis Grande até Pan de Azúcar, observei o mesmo contentamento, porém um pouco de altivez mais nos indivíduos, ainda que prestando-se me para tudo, porém queriam só representar de soldados acompanhando-me ao lado, sem quererem acompanhar a bagagem, e outras vezes adiante.
Do Pan de Azúcar para Maldonado me acompanhou um tenente, comandante do distrito, por algum tempo na estrada onde em conversação me disse que se receava muito do comandante do departamento que estava nomeado, não cometesse // as suas atrocidades antigas, e depois de dizer várias coisas concluiu que havia de fazer toda a diligência para não estar debaixo do seu comando. Disse-lhe que não se desanimasse que em vossa excelência chegando, logo se havia arranjar tudo de um modo muito agradável, pois já lhes tinha mostrado com experiência as vantagens que têm tido aqueles que estão unidos à nossa bandeira. Entreteve mais um pouco de tempo a conversação. Falou-me português muito bem e se despediu. Notei que por todos estes sítios quando entrámos há três anos não falavam mais do que espanhol, e agora são muitos os que falam português bastante claro, o que me dá ideia da oposição que tínhamos quando entrámos no país, e presentemente estarem a favor.
O coronel P… é pouco constante no seu parecer, e tem um oficial que é o seu espírito santo. Chama-se Furrezão se não me engano no nome. É todo metido a belo espírito, e político, de forma que o leva por onde quer ao tenente-coronel. Este homem da primeira vista // que tive com ele, se fez conhecer pelo modo com que falava. Julguei, pelas suas expressões, que estão com ideias de novas condições, e tratados, etc. Não quis entrar em questão por não aclarar ideias que não podia repelir.
Na disputa que houve com o coronel Almeida se faz conhecer a volubilidade de um, e a influência do outro. O primeiro esquecendo-se do que tinha convindo disse que tinha sido forçado o seu consentimento, e o segundo chama antipolítico o levantar a bandeira portuguesa na torre, depois do chefe do departamento estar feito coronel por vossa excelência, e tomar o comando com a sua autoridade.
De todos os rumores que tenho ouvido, conheço que o cabildo e o povo quer a nossa união, e que só alguns oficiais é que se querem reputar como nação, e fazerem tratados, etc. Ouvir Agui… [Francisco Aguilar y Leal (1776-1840), ministro interino de Hacienda em Maldonado] fala sempre comigo a nosso favor, e deseja que a Ponta de Leste [Punta del Este] se povoe; que para isto basta só distribuir terreno aos vizinhos que o quiserem para nele edificar, com obrigação de ocuparem logo o terreno construindo casas. Fala com o // coronel Almeida a respeito da disputa da bandeira. Diz-lhe que isso nunca verá a bandeira portuguesa na torre. Há algumas vozes que dizem dever arvorar a bandeira da pátria, e que nós somos seus auxiliadores. À vista disto me recordo que poderá haver nisto alguma influência anglicana.
Em San Carlos ainda está arvorado o barrete da liberdade e ninguém se atreve a derribá-lo. Os povos estão todos contentes, porém começam a duvidar decididamente o partido que tomarão. É entre os magnatas que há estas diferenças.
O comandante de Maldonado tem pedido armas que se lhe tem dado, e querem obrigar o povo a pegar em armas, julgo para apresentar a vossa excelência um maior número de gente. Têm chegado a dar em alguns para os obrigar. Isto tem feito retirar uns para Montevidéu e outros para a ilha. Corre aqui voz que a gente que se uniu em San José [de Mayo], depois de três dias tornaram outra vez a seguir o partido da Espanha ou pátria.
[…] [Não existe final da carta no manuscrito]
[Francisco António Raposo, Coronel do Real Corpo de Engenheiros]
Fonte: AHM-DIV-2-01-01-21 [imagens 27-30]
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Carta n.º 2 - De Francisco António Raposo a Carlos Frederico Lecor, com informações acerca de uma visita que o primeiro fez a San Domingos Soriano, Mercedes e Rincón de Gallinas, no final de 1818 e inícios de 1819 (Mercedes, 10 de janeiro de 1819)
Ilustríssimo e excelentíssimo senhor
Tenho a honra de participar a vossa excelência que tendo feito uma viagem muito breve, desembarquei na Colónia e achei as obras adiantadas. Sobre a cortina entre os dois meio baluartes está o parapeito feito com taipa; assim como no baluarte da Bandeira já estão feitos os parapeitos de terrão. As paredes dos quarteis das duas companhias estão levantadas, e as que formam o quartel da companhia da retaguarda estão concluídos para madeirar. Ficam continuando o quartel da companhia de vanguarda para quando voltar àquela praça se madeirar e telhar. Ficou eleito o terreno para a fábrica de telha e tijolo. É um lugar junto às barreiras, onde há uma boa planície, ficando-lhe perto a água do rio. Em vinte e duas horas, que ali me demorei, foi o que se determinou, e observei naquela praça sossego e confiança na povoação, sendo o único motivo de queixa a retirada da música para Montevidéu, por deixar a terra triste.
Sai para S. Domingos Soriano, onde cheguei // no dia seguinte ao meio-dia. Logo desembarquei para ver a praça. Pareceu-me a posição pouco militar e deficiente de defender a não ser sustida por alguma embarcação de guerra, que segure a retirada. Não tem mais do que ser o porto vantajoso para o embarque de fazendas. A povoação fica arredada da praia ou porto de embarque coisa de dois tiros de espingarda, e além de ser de pouco consideração, tem as casas muito espalhadas como em habitação de lavradores. Fiquei uma noite na povoação, e não posso deixar de dizer o grande crédito que o tenente Jacinto Roque de Sena tem naqueles povos, todos os festejavam, e lhes ouvi dizer que com a sua chegada tudo estava remediado, que lhes não havia de faltar coisa alguma.
Conheci o comandante paraguaio Yesdro [Justo Yegros], que foi das forças navais de Artigas. Pareceu-me muito ativo e de bons sentimentos e inclinações e de um carácter superior ao do capitão Palaços. Também conheci o português Saldanha que fez a revolução, nos seus modos e carácter mostra ser como o dos nossos lavradores portugueses. //
Cheguei à Capilha de Mercedes em dois dias. Na viagem que fizemos, admirei-me da quantidade de madeiras com que estão bordadas as margens das ilhas e do Rincão das Galinhas, e desembarcando em um lugar onde estavam cortando madeiras para lenha, me entranhei pelo bosque para ver as grossuras das árvores e a abundância que haveria; vi que se poderiam tirar vigas de trinta palmos de comprimento, e havia grossuras para se poder fazer bom tabuado, em quanto as qualidades me informei daquele rancho de gente, que me asseguravam e ao coronel Pinto haver muito boas qualidades de madeiras de construção, e até se achariam algumas árvores de madeira de epé ou arco e a largura da mata naquele lugar pela terra dentro seria de meia légua. Asseguram-me também que tanto as margens do lado do rio Negro como aquelas do lado do Uruguai estão bordadas de árvores, assim como as ilhas no Uruguai, que as vi muito frondíferas [sic] de árvores.
Pelo que julgo será de uma grande vantagem para // a Real Fazenda estabelecer um partido de gente, que se empregue em cortar madeiras para construção, aproveitando os troncos e ramadas em lenha para fornecimento das praças e para o comércio, persuadido de que só o corte das lenhas pagaria todas as despesas; visto que as embarcações de Buenos Aires e demais partes fazem grandes despesas nos cortes de madeiras para lenha, e estimariam achar a carga pronta para abreviarem a sua viagem. Vossa excelência muito melhor poderá julgar a grande vantagem que se poderia tirar de uma tão grande abundância de madeiras que bordam todas as margens.
Desembarquei no dia 5 ao meio-dia na Capilha de Mercedes e me apresentei ao excelentíssimo Brigadeiro Saldanha e Daun, a quem comuniquei as ordens que tive a honra de receber de vossa excelência. Vi a povoação da Capilha de Mercedes; é muito mais considerável do que S. Domingos, e a sua posição mais defensável. A povoação está toda barricada e em estado de poder resistir a qualquer ataque do inimigo. Estavam // aperfeiçoando os parapeitos ou cortaduras, e em tudo estavam apercebidos. Escolheu-se duas casas que se ligavam com um parapeito pelo lado exterior da povoação para servirem de forte para a guarnição que fica no povo, e em um lugar que entra a povoação guarnecem-se-lhe as seteias de parapeitos de tijolos guarnecidos de seteiras a fim de abrirem os fogos e esconderem o número de gente que os guarnece. Para afastar o inimigo devem chegar as paredes onde se abrigarão do fogo, se guarnece de paliçadas a uma distância que fique debaixo da direção dos tiros das seteias, para serem de cima defendidas com o fogo de mosquete. Têm estas casas capacidade em que possam ter víveres para se sustentarem enquanto não forem socorridas.
No dia seguinte, fui com o senhor Brigadeiro Saldanha visitar o general Curado, e o marechal Oliveira. Receberam-nos com cordialidade, obsequiando em tudo quanto a atenção permite. A sua corporação de oficiais se mostraram [sic] muito obsequiosos. O general Curado falou na cortadura que // já tinha principiado de que já tinham feito 160 braças de comprimento. Mostrou-nos um estrepe de madeira que mandou fazer para resistir ou estropiar a cavalaria. É uma armadilha de três paus cruzados, que fará a altura de dois palmos, e de todo o modo que fique se apoia em três pontas e apresenta outras três para cima. Como não tinha visto o terreno não podia dizer coisa alguma sobre a sua utilidade.
No dia depois, fomos ver o estreito do Rincão e a obra principiada. Tinham-na dado de empreitada pagando a 160 reis a braça, com as dimensões que vossa excelência tinha indicado; porém, o terreno é duro e, depois de uma camada de terra preta de três a quatro palmos de grosso, se encontra uma camada de tufo muito duro para ser levado a enxada, e só a picareta é que pode ser cavado. Este tufo é marnoso [margoso] e bastante duro. Esta dificuldade faz lembrar fazer somente escavações nos lugares onde se deve fazer fogo para flanquear o entrincheiramento, e fazer as continuações das linhas de abates com excelentes árvores de que // há abundância tantos nas margens da vanguarda como na retaguarda da linha. As duas alturas em que tanto falavam são muito pouco sensíveis pela sinuosidade do terreno; uma delas domina a outra ainda que distante. Porém oferecem vantagem para colocar artilharia, para defender a entrada, que deve ficar entre as duas alturas, e proteger os ramais que ligam com as margens do Uruguai e rio Negro.
Segundo o que me disseram, não terá uma légua de extensão; porém, não dou crédito a isto sem medir, o que farei logo que passemos ao outro lado. Julgo será muito mais fácil a obra por haver grande recursos de madeiras, o que muito cobiço ter em Montevidéu e na Colónia.
Continua-se a entrincheirar as duas casas na Capilha, e o coronel Fontes a debulhar o trigo que se apanhou ou colheu nas terras abandonadas, para depois se fazer a mudança de campo para o Rincão, para se continuar a obra do entrincheiramento, que // arbitrariamente o general Curado despendeu julgando [que] levaria outra direção. O campo novo do general Curado está para dentro do estreito do Rincão coisa de meia légua, chegado à margem do rio Negro em uma altura que domina para um e outro lado.
Meu general, sinto ter que dizer da deserção dos soldados que, sem motivo de falta sensível, se têm deixado seduzir por uma carta ou proclamação de Artigas, que aqui deixou, no fez espalhar oferecendo passagem livre para qualquer parte que queiram ir, sem que os obrigue a pegar em armas. Esta ideia tem induzido soldados de bom procedimento que, levados pode ser pelo desejo de ver a sua pátria, os tenha induzido à deserção, persuadidos que por este meio poderão mais facilmente buscar passagem para o reino, ou ficarem livres do serviço. Consta-me serem 13 do batalhão, e dois de artilharia. Esta ideia é muito lisonjeira para os soldados e temo que o expediente não produza maior efeito, pois a esperança de // por este meio poderem ver mais depressa as suas famílias pode agradar muito aos soldados, que julgo por agora não ter motivo de queixa mais que a demora de algum pagamento, pois são muito bem fornecidos de rações, e abundantemente. O senhor brigadeiro Saldanha procura remediar isto quanto pode com as mais eficazes como julgo participará a vossa excelência.
Sendo quanto se me oferece dizer, rogo a vossa excelência me queira desculpar a longa narração com que tomo o precioso tempo a vossa excelência por julgar dever informar sobre todos os objetos que julgo devem interessar, pedindo dito perdão e a continuação das ordens de vossa excelência.
Deus guarde a vossa excelência. Quartel na Capilha de Mercedes. 10 de janeiro de 1819.
Ilustríssimo e excelentíssimo senhor Barão da Laguna
Francisco António Raposo
Coronel comandante do Real Corpo de Engenheiros
Fonte: AHM-DIV-2-01-01-21 [imagens 31-39]
Imagem: Capilla de Santo Domingo de Soriano vista desde la Plaza (Wikicommons)
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