domingo, 26 de maio de 2019

Transcripto: A Linda Marion (Júlio de Sousa e Costa, 1940)


Esta lindeza, natural, dizia ela, da cidade de Rouen, devia ter vinte e seis a vinte e sete anos quando o Rei D. José I, com imensa satisfação de muita gente fidalga, burguesa e mecânica, faleceu em 1777, no seu palácio de madeira, sito na AJUDA. 

A francesinha, galante e estouvada, morava na JUNQUEIRA, com uma dama de aspecto venerando, calmo e digno, a quem chamava tia, como é do costume em certas damas da categoria de Marion; era daquelas tias que providenciam, e de todo o coração, para a felicidade, bem-estar e abundância das sobrinhas de sangue alheio... Tinham morado, parece, no ano de 1774 para os lados de S. Vicente de Fora, após a sua chegada a Lisboa; transferiu o seu domicílio para a JUNQUEIRA e perto do palácio de certo fidalgo que estivera muitos anos em França e que armara em protector disvelado e desinteressado, como é do costume... 

A Marion era israelita e um bonito diabrete de saias... Como ela deu fundo em Lisboa é que eu não sei. As judias, nesse tempo, andavam muito em voga, reminiscências do tempo do D. João V que adorava essas beldades exóticas e muito principalmente as mestiças do Brasil, ardentes e sensuais, atravessadas de índia e dessa má raça de gente que se mandava desterrada para a colónia ou degredada por ter dado mostras de excelentes qualidades... 

E como as boas manhas se aprendem, não foram poucas as ligações de fidalgos e de burgueses, que viram nesse pendor entusiástico do Rei Magnânimo uma indicação de bom tom. O sangue ardente procura sempre o seu similar, e, a-pesar-dos olhos da Inquisição, as judias tripudiavam sôbre as almas dos cristãos... 

O fidalgo, de apelidos Saldanha da Gama, viajado e muito culto, tomou conta da beleza interessante que lhe aligeirava os dias, e, como pessoa alguma é eterna, foi juntar-se pouco depois aos seus que jaziam no carneiro da família. A Marion era daqueles espíritos que encaram as coisas dêste mundo sublunar com a melhor da coragens que dão em terra com tôdas as filosofias, e como dispunha duma tia que só lhe custara o dinheiro do passaporte, não chorou o fidalgo senão durante vinte e quatro horas; enfim, um desgôsto muito decente, do qual fôra talvez a causadora...

O Capelão referiu-se a ela, de quem ouvira certamente falar nos salões dos seus conhecimentos e que era conhecida em tôda a Lisboa pela francesa da Junqueira ou a francesa Marion.

Era uma estrêla de grande brilho queimando as fortunas dos seus apaixonados com facilidade incrível. Ela é que não as derretia! Entesourava-as carinhosamente nos cofres do seu banqueiro, um francês de Lyon, que morava no CAIS DO SODRÉ...

«A francesa da Junqueira, um demonio tentador que arrastava as almas para o mau caminho...»

Falava como padre, a-fias-de armar aos pássaros... Como homem talvez não falasse assim da linda judia que enfeitiçava tôda a gente. O padre combatia os apetites da carne simplesmente com palavriado porque êle devia saber que a Mulher e o Amor são instituições divinas...

Barafustava com os excessos da beldade mas aquilo era música celestial... música à qual pessoa algurna dava ouvidos! …

Li algures, e há muitos anos, que o Rei D. José I tivera, entre muitas, como se sabe, séria paixoneta por estrangeira que residia porto ds palácio de Nossa Senhora da Ajuda. Como é do domínio público, a distância entre e Ajuda e a JUNQUEIRA não é muita.

Seria a Marion, a linda Marion que tinha olhos verdes e urna luxuriante cabeleira negra? Não seria o amor, caso êsse facto se deu, que lançaria a francesa nos braços do real torneiro. Este não era exemplar de beleza varonil e os dois dentes da frente, imensamente salientes, desfeiavam-no muito.

O Monarca, como já disse, costumava ir visitar uma pessoa que muito estimava. Não façamos, pois, o juízo temerário de julgar que êle teve o primeiro ataque apoplético em casa da fascinante e sedutora Marion... 

*
Palácio da Ribeira Grande, Rua da Junqueira (fonte: Wikicommons)

Os dragões rondavam-lhe a porta...

É tudo quanto há de mais natural, porquanto as belezas estão sempre guardadas em palácio por façanhudos dragões de dentuça arreganhada e prontíssimos a mastigar quem se atreva a querer pôr a mão nas deliciosas beldades...

«Mulheres daquelas são obra do diabo que vem a este mundo para a tentação.» 

Disse Frei João do Espírito Santo. 

Se era possível aquela beleza ser obra dum personagem de quem os livros dos Doutores da Igreja de Roma fazem um retrato horrível...

Se ela era judia ainda os mesmos conspícuos doutores poderão, seguindo os seus tectos e lucubrações, suspeitar que ela tivesse, segundo a tradição, o apêndice caudal, ainda quo reduzido...

Sedutora era ela, a darmos crédito às informações e também ao nosso fradinho, que lhe chama tentadora.

Oh! S. Tomaz tinha razão às carradas quando disse esta frase que é uma sentença: 

− Os homens seriam grandes santos se amassem tanto Deus como amam as mulheres!

E os dragões que escoltavam o Rei o o Ministro não poderiam deixar do notar, quando passavam pela JUNQUEIRA, aquela beleza que, no dizer de Frei João do Espírito Santo, ora obra do diabo... 

E há por aí tantas obras diabólicas que são a alegria de muita gente que não se importou de ser genro de Satanás!...

A Marion ainda vivia em Lisboa no ano 1805 e foi vista em casa de Junot (1) ainda interessante, soberbamente trajada e com brilhantes de valor. 

O terrível Pina Munique trazia-a debaixo de olho; nunca, porém, a vexou.

E se a paixão não fosse do Rei mas sim do Pombal que, a-pesar-da sua majestade de maneiras, era conquistador ?

«−  Conquistador ? − preguntará o leitor, um pouco desconfiado − Isso é possível?

Sim, senhor. Está averiguadíssimo. Simão da Luz Soriano asseverou no 2.º volume da sua HISTÓRIA DE D. JOSE I, que viu uma carta dirigida pelo Pombal a certa dama a quem pedia entrevista. Mártens Ferrão, então Ministro, não consentiu que se publicasse a carta (2). Camilo refere-se no PERFIL a êste facto. 

(1) Alexandre Andoche Junot. Nasceu em Bussy-le-Grand, em 1771 e faleceu em Montbard em 28 de Julho de 1818. Ministro de França em Lisboa. Comandou a 1.ª invasão em Portugal, e roubou sapatos em Abrantes e a Bíblia dos Jerónimos em Lisboa... 

(2) Conselheiro de Estado, Dr. João Baptista da Silva Ferrão de Carvalho Mártens. Estadista, diplomata, escritor, orador, par do Reino, lente da Universidade de Coimbra, jurisconsulto, e embaixador em Roma, onde faleceu em 1895. 

Apresso-me, todavia, a declarar que não será por isso que êle estará no Purgatório, porque os Doutores da Igreja de Roma e os Santos Padres me elucidaram: 1.º que os pecados de amor não são castigados; 2.° que o amor, corno já se disse, é instituição divina e que somente são puníveis: − roubar a péssima mulher do nosso próximo e iludir a nossa próxima com promessas de casamento...

E assim falou Zaratrusta. O Primeiro Ministro de D. José I, neste assunto, cousa alguma tem a temer!... Basta o que lhe está carregando a alma e que não é pouco!...

«Ouve uma ves grande batalha á porta da franceza da Junqueira entre fidalgos e ofeciais dos dragoens.» 

Batalha, diz o frade. E como éle soube essas cousas! Com certeza que nessa ocasião ainda andava pelo mundo, quero dizer, pelos salões onde certamente chegou o eco do prélio, que devia ter sido de belas espadeiradas dos dragões, que foram sempre até 1834 muito expeditos em desancar o antagonista com os espadragões que usavam e que pareciam montantes, principalmente os do Chaves, que tinham fama !...

Os fidalgos não teriam a opor aos sabres dos seus antagonistas senão os espadins, se fôssem colhidos de surprêsa. Um dos condes de Óbidos, esgrimista temível, quando saía à noite com amigos seus não levava faim nem outro espêto semilhante, mas sim boa catana de aço de Toledo que podia cruzar-se com as espadas de cavalaria.

Portanto, acredito que essa batalha, como o Capelão informou, foi travada com todo o arreganho, onde se deu e recebeu muita pranchada.

«...e ouve muitos feridos de ambos os lados e sem consequencia de maior.»

Quere isto dizer em linguagem mais clara e de modo que tôda a gente compreenda: − não foi pessoa alguma a enterrar na igreja, conforme era a moda naquele tempo. Limitou-se a batalha, − a qual foi vista e presidida de longe por Cupido, o deus do Amor − a bastas pranchadas que se curaram com arnica, vinagre e camomila, então preconizada como cicatrizante, não sei por que Bulas, enquanto a Marion, a encantadora, diria, talvez, como a sua patrícia De Lorme, e também Marion, quando viu uma grande briga assanhada debaixo das suas janelas:

« − Ó qu'ils sont beaux!... Qu'ils sont beaux!...»

O que se passou depois no quartel dos ferozes dragões da AJUDA o nos palácios dos fidalgos é que o frade não diz... Conjectura-se, porque é raro o leitor que não tenha jogado à pancada por causa do namôro e sofrido depois as conseqüências...

*


El-Rei Dom José, por Vieira Lusitano (fonte: Wikicommons)

A Marion teve em ponto de rebuçado a mocidade doirada daquele tempo. Pelo menos não é só Frei João do Espírito Santo que o diz.

A judiazinha interessante e linda pôs à contribuição não sórnente os corações como as bôlsas dos seus apaixonados...

Dizia-se viúva, meio de que muitas lindezas lançam mão para se tornarem mais apetecidas e interessantes, e sucedeu que

«... o Conde de Obidos, D. José, se apaixonou pela tal franceza da Junqueira, e foi urna grita de indignação em toda a Lisboa.» (1) 

(1) O Conde de Óbidos, 4.º do título, D. Jose de Assis Mascarenhas e Lencastre, nasceu em 6 de Maio de 1745 e faleceu nas Caldas da Rainha, em 27 de Agôsto de 1806.

Essa grita de indignação foi, sem dúvida alguma, da parte daqueles a quem a francezinha deu as cabaças. Estender a grita por toda a capital é uma hipérbole que não é de acreditar. Indignou-se a Condessa, com certeza; fizeram côro as visitas; fecharam-se no oratório a pedir que o Conde tivesse juízo e armou-se forte conspiração para a francesa ser posta na fronteira; isso sim, acreditamos todos. Quem é que se indigna com uma mulher bonita?!

A francesa é que não saiu da Junqueira... Tinha amarras fortíssimas a sereia e 

«... uma alta proteção com que Sebastião Joseph não poude, dizia-se nesse tempo...» 

Alto! Quem era a pessoa que açamava o terrível Pombal ? Não é difícil de adivinhar. O Rei D. José I deixava fazer tudo ao seu terrível ministro. Tomar-lhe o Pombal satisfações no assunto amatório é que não!...

Ao mesmo tempo, porém, fico vacilante... Se a Marion era uma cortesã, ainda que do tom, das finas, e procurada por muitas pessoas de qualidade, como é que o Monarca freqüentava a sua casa? 
Bastava urna ordem do Soberano para tôda a gente nem sequer pensar em parar à porta da formosura tão procurada e altamente disputada!...

Protecção que fazia aquietar o Pombal não conheço senão uma: a do Rei. A do Arcebispo de Tessalonica nem pensar nisso, se bem que fôsse um brègeirete de alto calibre, como disse Ramalho Ortigão, o que aliás era já sabido no Ramalhão e em Queluz... Que excelente capítulo se teria feito sôbre a bela MARION se o fradinho tivesse sido mais prolixo!...

Ainda assim alguma cousa se arranjou!...


* * *


Transcrito de Júlio de Sousa e Costa, Memórias do Capelão dos Marialvas, Lisboa: João Romano Torres e C.ª, 1940. pp. 177-187. [Com base nas curtas memórias de Frei João do Espírito Santo, cujo manuscrito teve acesso]

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