terça-feira, 6 de outubro de 2020

Memórias de António Ribeiro da Fonseca Relativas ao Período entre 1828 e 1834 (excerto)


«[…] Assentando porem praça voluntariamente no 1.º de Janeiro de 1826, em pouco tempo fui promovido a cabo d'esquadra, por concurso num exame vago em arithemetica ; em novembro do mesmo ano marchei para a campanha, recolhi ao meu regimento, artilheria n.º 4, em 1827; matriculei-me no primeiro ano mathematico, n'aquelle mesmo anno; e, em principios de 1828 fui promovido a furriel.

Até aqui parece que a sorte me sorria, chegou porem o dia 29 de abril d'aquelle mesmo anno, segundo anníversario da Carta Constitucional, e em logar de uma parada geral para solemnisar aquelle dia, o general Gabriel Antonio Franco de Castro, governador das armas do Porto, ordenou que os corpos da guarnição da cidade, ficassem retidos nos quartéis, á excepção da guarda real de policia, que juntamente com a ralé, espalhada pelas ruas da cidade, aclamaram o Sr. D. Miguel, rei absoluto, insultando ao mesmo tempo os liberaes que encontravam.

Ao toque de recolher do mesmo dia, a minha companhia, seguida das outras companhias, e infanteria 18, todos aquartelados no mesmo quartel, saimos para a parada, ainda que sem os nossos officiaes, fizemos uma manifestação armada dos nossos sentimentos, dando vivas a EI-Rei o Senhor D. Pedro IV, e á Carta, Constitucional; apparecendo porem os officiaes do meu. regimento, e de infanteria 18, trataram de conter o nosso enthusiasmo, mandando-nos recolher á caserna.

Na verdade, os officiaes dos dois corpos eram liberaes, todavia contiveram os seus subordinados de todas as vezes que saíram para a parada armados, e com a mesma manifestação. Eu sabia que cavallaria 12, caçadores 11, e um batalhão de infanteria 12, resto da guarnição da cidade, tinham promettido annuír ao nosso grito, mas infelizmente nem se mexeram; o batalhão de caçadores 11, esse foi unir-se ao general, para supplantar os dois corpos, no caso que chegassem a sair do quartel de S. Ovídio. N'uma palavra nada conseguimos: amanheceu e cessamos com o nosso enthusiasmo.

No dia seguinte, 30 de abril, o meu coronel recebeu ordem do quartel general, para ali me mandar apresentar; sendo apresentado ao proprio general, mandou-me desarmar, e metter na prisão da Casa Pia, onde encontrei já prezos alguns officiaes inferiores do 18.

No dia seguinte fomos onze algemados, mettidos no centro de uma companhia de caçadores 11, com armas carregadas á nossa vista, e conduzidos para o Castello de S. João da Foz. A nossa sorte estava determinada pelos artigos de guerra, nada mais havia a esperar. O batalhão de infanteria 12 foi mandado para a sua praça, Chaves, o regimento de infanteria 6 foi para o Porto.

No dia 16 de Maio, o referido regimento 6 sublevou-se, e com os seus officiaes, correu ao campo de S. Ovidio, onde se lhe uniram, o meu regimento e infanteria 18, e mais tarde cavallaria 12.

O general, acompanhado por caçadores 11, ainda foi ao campo de S. Ovidio arengar aos corpos sublevados, tentando contel-os, mas, receiando que o resultado lhe fosse funesto, fugiu da cidade acompanhado peta policia, caçadores 11, o major Rosa [possivelmente Bernardino Mascarenhas da Rosa, que vem posteriormente a comandar Cavalaria de Chaves, como tenente coronel], de cavallaria 12, e alguns poucos cavallos d'este regimento. O batalhão 11, abandonou o general em Penafiel, e veio apresentar-se ao Porto.

No dia seguinte, 17 de Maio, logo pela manhã, correu ao castello da Foz o tenente coronel de cavallaria 12 (conde do Casal ultimamente [José de Barros e Abreu Sousa Alvim, 1º barão e 1º conde do Casal]) com alguns officiaes e sargentos do mesmo corpo, a soltar-me e aos meus dez companheiros das prisões do Castello.

Depois d'estes acontecimentos, entrei em operações de campanha, até á desgraçada retirada para a Galliza. Desarmados, á entrada daquela provincia acompanhei o meu regimento, até Chantode e iria ao fim do mundo, não somente em vista dos meus sentimentos liberaes, mas tambem porque em Portugal me esperava o carrasco.

Achando-nos porem n'aqueIla localidade com toda a esperança de marchar para a Corunha, e ali embarcar para qualquer parte do globo, em consequencia de uma ordem de Fernando VII, toda a força portugueza foi separada dos seus officiaes, metida no centro de um regimento hespanhol, e conduzida á raia de Portugal e entregue ao regimento de cavallaria N.º 6, que para nos acostumar, nos foi distribuindo algumas espadeiradas durante a marcha para Chaves, onde ficamos presos no forte de S. Francisco.

Fomos conduzidos, sempre presos para o Porto, e d'ali embarcamos para Cascaes, aonde nos foi distribuido um pão diariamente, dando-se-nos o pomposo titulo de prisioneiros de guerra! Ainda tiveram a humanidade, de dar a cada presioneíro uma enxerga e uma manta.

Passado pouco tempo, fomos conduzidos para Estremoz, onde nos foi distribuída a competente enxerga, manta, um pão, um rancho, e 20 reis diarios pagos quinzenalmente; porem também principiaram para os chamados prisioneiros, os trabalhos mais abjectos, dando comtudo hospital aos doentes. Porem com toda esta humanidade, por duas vezes tentaram envenenar-nos, e eramos victimas constantes do mais fero despotismo; se narrasse os episódios da minha desgraçada historia durante seis annos de prisão, muito teria que escrever, mas como são aguas passadas, e de que ninguem se lembra, a não ser algum dos pobres presos, que ainda vivem, limitar-me-hei a dizer que de Estremoz, fomos mudados para Elvas, aonde tambem nos deram uma enxerga, ou uma esteira de tabúa, uma manta e um rancho, se rancho se podia chamar, porem os 20 reis diarios acabaram, e para supprir esta falta, lançaram-nos correntes aos pés; as coisas cada vez se iam tornando peores para os miguelistas, mas para os presos as calamidades aumentavam.

Marchamos bem algemados em conductas de 50 presos, pois que eramos mais de 300 para Almeida.

Ali tudo se acabou para nós, menos os trabalhos. Nem enxerga ou esteira, nem manta, nem rancho, nem pão, nem 20 reis, e nem hospital para os doentes) nada absolutamente nada; os que morriam enterravam-se no fosso, porque malhados (era o nosso titulo) não podiam ser enterrados em sagrado. Assim vivemos desde 22 de Fevereiro até 18 de Abril de 1834.

Este dia 18 de Abril, de eterna recordação para mim, foi aquelle em que nos resgatamos das differentes prisões d'aqueIla praça. Defendi Almeida com os meus companheiros de prisão, e infortunios, que eram mais de 2000, ainda que com poucos officiaes, e muitos paizanos que ali estavam presos, até á conclusão da guerra; depois do que fui mandado servir para o primeiro batalhão de artilheria no Porto.

Organisados em 1834 os dois regimentos de artilheria de 16 baterias cada um, fui chamado á secretaria do regimento pelo major o faIlecido general José Gerardo Ferreira Passos, que me ordenou em nome do coronel (tambem já faIlecido, o visconde d'Ovar [António da Costa e Silva, 1.º Barão e 1.º Visconde de Ovar]), que escrevesse a minha historia desde que assentei praça.

No fim de três dias entreguei o meu trabalho, e fui promovido a 2.º sargento. para a 1.ª bateria a cavaIlo, com o qual marchei para Hespanha. 

Aqui teem os meus camaradas, as razões que houve para que eu, em 1835, só fosse 2.º sargento.

[...]

Elvas, 12 de Janeiro de 1879.

António Ribeiro da Fonseca

Tenente Coronel reformado.»


* * *

Retirado de Boletim do Arquivo Histórico Militar, 8.º volume, Famalicão, 1938, pp. 75-77.

Agradecimentos à Biblioteca do Exército.


Imagens:

Porta da Fortificação de de Almeida - ligação

Praça da República, antigamente Largo de S. Ovídio - ligação 

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